• eu estou morta. eu não tenho desejo por você. meu corpo não quer mais aquele que não ama.
  • nunca escrevi, e pensei que escrevia, nunca amei, e pensei que amava, nunca fiz nada a não ser esperar diante da porta fechada.
  • a história da minha vida não existe. não existe. nunca há um centro para isso. nenhum caminho, sem linha. existem grandes espaços onde você finge que costumava ser alguém, mas não é verdade, não havia ninguém.
  • pergunto se é comum ficar triste como estamos. ele diz que é porque fizemos amor durante o dia, na hora mais quente. diz que depois sempre é terrível. e sorri. diz: com amor ou sem, é sempre terrível. diz que isso passará com a noite, assim que ela chegar. eu digo que não é só por ser de dia, que ele está enganado, que sinto uma tristeza que já esperava e que vem só de mim. que sempre fui triste. que vejo essa tristeza também nas fotos em que sou menininha. que hoje, ao reconhecer essa tristeza como a que sempre senti, eu quase poderia lhe dar meu nome, a tal ponto ela se parece comigo.
  • já estou ciente. sei algumas coisas. sei que não são as roupas que tornam as mulheres mais ou menos belas, nem os cuidados de beleza, nem o preço dos cremes, nem a raridade, o valor dos adornos. sei que o problema está em outro lugar. não sei onde. só sei que não é onde as mulheres pensam que está.
  • tive essa sorte de ter uma mãe desesperada de um desespero tão puro que nem mesmo a felicidade da vida, por mais intensa que fosse, chegava a distraí-la totalmente dele. o que nunca vou saber é que tipo de fato concreto fazia com que ela a cada dia nos largasse à própria sorte. desta feita, talvez seja a besteira que acaba de fazer, essa casa que acaba de comprar – a da foto –, da qual não tínhamos a menor necessidade, e isso com meu pai já muito doente, à beira da morte, questão só de alguns meses. ou será que ela acaba de perceber que também está doente, da mesma doença que vai matá-lo? as datas coincidem. o que não sei, como ela tampouco devia saber, é a natureza das evidências que a trespassavam e faziam aparecer esse desânimo. seria a morte de meu pai, já presente, ou a morte do dia o questionamento desse casamento? desse marido? desses filhos? ou o questionamento mais geral de toda essa existência?
may 19 2019 ∞
jan 7 2020 +