• "vez por outra, penso as relações humanas como algo macio que nem areia ou água, e, ao derramá-las em recipientes específicos, damo-lhes formas. então a relação de uma mãe com a filha é despejada em um recipiente rotulado "mãe e filha", e ela assume os contornos do recipiente e fica contida ali, aconteça o que acontecer. [...] mas como seria criar uma relação sem nenhuma forma preestabelecida? simplesmente derramar a água e deixá-la cair. imagino que não fosse tomar forma e escorrer para todos os lados. é um pouco como o Feliz e eu, acho. não existe um caminho óbvio pelo qual qualquer relação entre nós possa seguir. não creio que ele me descreveria como uma amiga, pois ele tem amigos, e o jeito como se relaciona com eles é diferente de como se relaciona comigo. ele é muito mais distante de mim do que acho que é deles, e ao mesmo tempo somos em certo sentido mais próximos, já que não há restrições ou convenções que confinem nossa relação. o que a torna diferente, em outras palavras, não é nem ele nem eu, tampouco alguma característica especial de um de nós, nem mesmo a combinação de nossa personalidade individual, mas o método pelo qual nos relacionamos - ou a ausência de método. talvez mais cedo ou mais tarde um suma da vida do outro, ou por fim viremos amigos, ou outra coisa. entretanto, o que quer que aconteça, será pelo menos o resultado desse experimento, que às vezes parece estar dando muito errado, e às vezes parece ser o único tipo de relação que vale a pena."
  • "e se o sentido da vida na terra não for o progresso eterno rumo a um objetivo indefinido - a engenharia e a produção de tecnologias cada vez mais poderosas; o de desenvolvimento de formas culturais cada vez mais elaboradas e abstrusas? e se essas coisas ascendem e recuam naturalmente, como marés, enquanto o sentido da vida continua sempre o mesmo - só viver e estar com outras pessoas?"
  • "se um dia eu conseguir te agarrar, você não vai precisar me falar, ele disse. eu vou perceber. mas não vou correr muito atrás. vou ficar onde estou e observar se você chega perto de mim; sim, é isso que os caçadores fazem com os cervos, ela disse. antes de matar."
  • "e provavelmente te magoei, grande coisa. qualquer um pode magoar uma pessoa caso se esforce pra isso. mas, em vez de ficar brava comigo, você diz que eu posso ficar à vontade para continuar aqui e que você ainda me ama e tudo o mais. porque você tem que ser perfeita, né? não, você realmente tem um jeitinho só seu, tenho que admitir. e me desculpa, está bem? não vou tentar te alfinetar de novo. lição aprendida. mas, daqui por diante, não precisa mais agir como se estivesse na palma da minha mão, já que a gente sabe bem que não chego nem perto de você. combinado?"
  • estariam cientes, na intensidade daquele abraço, de que havia algo um bocado ridículo naquela cena, algo quase cômico [...] já que a vida em sua mediocridade e até mesmo em sua feia vulgaridade se impunha por todos os cantos do entorno delas? ou nesse momento estavam alheias, ou algo além de alheias - estariam elas invulneráveis, ilesas à vulgaridade e à feiura, olhando por um instante para algo mais profundo, algo escondido sob a superfície da vida, não a irrealidade mas a realidade oculta: a presença de todos os momentos, em todos os lugares, de um belo mundo?"
  • "mas agora vocês são só amigos [...] e você está feliz, ela prosseguiu. por fim, ele deu uma risada, eu não iria tão longe, ele disse. não, acho que no meu caso é aquela velha vida de desespero silencioso."
  • "eu nunca fui bom nisso. [...] em deixar que cuidem de mim. [...] acho que tenho medo de incomodar. [...] é que eu não gosto de ter a impressão de que a pessoa está fazendo algo só por achar que eu quero que ela faça, ou por se sentir obrigada. talvez eu não esteja me explicando direito. não é que eu nunca queira nada de ninguém. é óbvio que tem coisas que eu quero, e muito. ele se calou, balançou a cabeça negativamente. ai, não estou me expressando bem [...] mas, simon, ela explicou, você não me deixa chegar perto de você. entende o que eu estou falando? e, sempre que eu consigo, você se afasta."
  • "e quando passo o dia mudando vírgulas de lugar, e depois preparo a janta, e depois lavo a louça, e depois dessa série simples de tarefas me sinto tão exausta que seria capaz de afundar chão adentro e me fundir com a terra - essa é a mentalidade de alguém pronta para ter um bebê? [...] mas talvez ele tenha razão - talvez eu não seja tão ruim assim, talvez eu seja até uma boa pessoa, e nós tenhamos uma família feliz juntos. algumas pessoas têm, não é? famílias felizes, digo. eu sei que você não teve, e eu não tive. mas, alice, ainda fico tão contente de termos nascido."
  • "e de manhã acordo sentindo uma alegria que quase dói. viver com alguém que eu realmente amo e respeito, que realmente me ama e me respeita - que diferença isso fez na minha vida. claro que está tudo terrível no momento,[...] mas isso significa apenas que amo a minha vida e que estou animada para retomá-la, animada para sentir que ela vai continuar, que coisas novas continuam aparecendo."
  • "suponho que ter um filho seja simplesmente a coisa mais normal que me imagino fazendo. e quero isso - provar que a coisa mais normal nos seres humanos não é a violência ou a ganância, mas o amor e o cuidado. provar a quem, eu não sei. a mim mesma, talvez. [...] sei que essa não foi a vida que você imaginou para mim, Alice. [...] tampouco é a vida que eu imaginava para mim mesma. mas é a vida que eu tenha, a única. e, ao te escrever esta mensagem, estou muito feliz. com todo o meu amor."
apr 16 2023 ∞
mar 8 2024 +