- "será que você pode parar um pouco de bater? pelo menos por um instante. porque assim eu não consigo pensar no que dizer. e tenho certeza de que vou me arrepender depois. sempre nos lamentamos mais tarde, não é? a vida inteira nos torturando com o mastigar de palavras e frases que deveriam ter sido colocadas para fora em momentos que só poderiam ser aqueles, mas que restaram dentro da boca para ser ruminadas até a morte. enjoando o estômago até lá. há tanto que deveria ter sido tido."
não se preocupe com a partitura.
mas.
eu viro. você sabe.
- "talvez eu diga mais de uma vez o que você já ouviu desde que chegou. nos vômitos não se escolhe o que precisa sair do corpo. nem o que deve permanecer dentro dele. enquanto não encontrar o que eu procuro, meu dedo continua aqui, no fundo da gargante. e isto é o que sai de mim. o vômito é o contrário da sede."
- "ele: na palma da sua mão? não seja ridícula. é apenas uma maluca. uma mulher comum e seu golpe. uma louca e suas vinganças contra desconhecidos. uma velha estragando histórias antes do tempo. não seja ridícula."
- "mas. e se você se cortasse? e se você abrisse um rasgo de um lado até o outro? e se, em todo caso, você segurasse uma faca e pressionasse sua ponta afiada contra a pele estragando os desenhos? interrompendo os traçados? desviando os caminhos? e se você fizesse um talho? um rasgo. uma ferida. criasse uma cicatriz que mudasse a previsão?"
- "porque, ás vezes, apesar dos avisos sobre a existência de minas enterradas sob o chão, insistimos em ultrapassar as cercas. teimamos em desviar cuidadosamente dos arames farpados. porque, ás vezes, só acreditamos no perigo quando tudo vai pelos ares. quando vemos nosso corpo estilhaçado. Mutilado. Destruído. quando enxergamos nossos membros, ossos e vísceras finalmente espalhados pelo chão. como agora."
- "é só o começo da escuridão."
- "quando falo assim, não consigo me lembrar de tudo o que já foi dito; não consigo ter certeza se falei mesmo o que estava pensando. se deixei escapar o que não poderia ser dito. se apenas pensei e acabei não dizendo o que gostaria."
- "por quanto tempo mais aqui? por quantas horas ainda meu mundo parado por sua causa?"
- "eu preciso terminar o que estava fazendo. os cacos, a poeira, os lençóis. a louça, as plantas, os tapetes. o pano umedecido para esfregar as paredes. tanto a ser feito e."
- "a gente sempre inventa um punhado de coisas ridículas para fingir que está tudo certo, não é? uma lista de tarefas tolas. uma infinidade de obrigações inúteis para ocupar a mente. pequenas fugas. qualquer coisa que nos distraia."
- "qualquer imagem nova que cubra com uma cortina negra as que não queremos mais enxergar. qualquer barulho ensurdecedor que não nos deixe mais ouvir as mesmas vozes se repetindo dentro da cabeça. a gente sempre inventa. um cheiro forte de esgoto que enterre os perfumes doces e incômodos. um corte profundo que doa mais que o anterior. um comprimido amargo e milagroso que, por algumas horas, não nos faça sentir nada. nada."
- na última noite, apenas nove passos. apenas poucos metros entre o quarto e a sala, mas uma distância enorme. um vão entre os nosso cômodos. na última noite, apenas centímetros, mas um abismo. uma fissura escancarada. um buraco profundo e quilométrico entre os nossos pés."
- "é no primeiro dia que damos o primeiro passo, não é? que conhecemos o caminho. que percorremos o primeiro milímetro, quase invisível, da trilha que nos conduz para a inevitável separação. é no primeiro dia que a vida enfia uma alavanca na rachadura minúscula que, com o tempo, será transformada em uma cavidade sem fim. todo amor carrega consigo sua extinção. é no primeiro encontro, eu sei."
- "porque, agora há pouco, o naufrágio. os dois caídos no mar. porque agora há pouco, cada um sendo levado para lados diferentes. sem gritos. sem tentativas de enroscar as mãos. sem forças [ou vontade?] para bater os braços e voltar a se aproximar. sem acenos pedindo salvação. agora há pouco, apenas a correnteza violenta. a distância cada vez maior. as ondas furiosas e o afogamento. aqui. olhem."
- "está não é uma manhã qualquer. um como de dia como todos os outros. [...] está amanhecendo como sempre amanhece, mas este não é um dia qualquer. porque, agora há pouco, vocês deveriam saber: a última noite."
- [...] e os olhos falando sobre o fim, em meio ao silêncio das bocas. [o que dizer quando se está indo embora?] agora há pouco, a porta fechada como se não pudesse mais ser aberta."
- "as palavras vomitadas até o esgotamento. o passado irrompendo e transbordando. a certeza de que fantasmas estão sempre prontos para retornar."
- "no final da última noite, o tecido que me embrulhava parcialmente abaixado, puxado com uma das mãos, mostrando um dos meus seios. fique. meu corpo oferecido em um último e desesperado recurso. fique. sacrifício bíblico. oferta. apelo. por favor, fique. na última noite, você ignorando o meu pedido, desistindo; eu, parada no mesmo lugar, sem forças para reagir."
- "fantoche de pano sem a mão que comanda os movimentos do brinquedo. trapo vazio. marionete de fios cortados. murcha sobre as próprias pernas. sem meios para prosseguir. consciente da própria fragilidade."
- "querendo um grito. um tapa. um soco. um empurrão contra um dos móveis. os cabelos puxados até o chão. desejando qualquer coisa, menos o seu doloroso silêncio. [..] o corpo como se abandonado por quem deveria controlar as ações e soltar as falas.
- "o bicho que passou horas [..] girando em desespero sem poder alcançar o recipiente. batendo o corpo frágil infinitas vezes contra o vidro. cada vez mais forte. cada vez mais enlouquecido. cada vez com mais intensidade e aflição até o momento em que uma pancada mais violenta amassou os ossos de sua cabecinha delicada provocando o estremecimento. a morte rápido, depois da loucura provocada intencionalmente para a experiência."
- "na última noite, eu repetindo para mim mesma, sem abrir a boca, que algumas pessoas deveriam escolher, enfim, o que querem ser na nossa vida: âncora ou asas? no fim da última noite, eu confusa, atordoada, resmungando por dentro, enquanto ouvia seus passos duros, enquanto escutava suas solas rudes e obtusas se afastando pelo corredor escuro e sem ninguém. não volte. se deixou de gostar, por favor, não volte, era o que eu dizia no final da última noite."
- "mas, então, você aqui. desobedecendo. emendando uma página já rasgada. prolongando um final já escrito há tanto tempo. mudando de lugar o ponto onde tudo deveria ter parado."
- "só uma dor pode anular a outra."
- "o inferno pode tomar todas as formas."
- "a memória é um filtro que muda o passado. um espelho torto que divide as imagens em pedaços estranhos e fora de proporção. engana, a memória. nada foi exatamente como você tem certeza, Luísa. nada. fechada ou aberta? silêncio ou batidas? na realidade, foi tudo assim: "
apr 2 2023 ∞
mar 8 2024 +