- Há pouco mais de três décadas, a Funerária Odes Noctem se instalou como uma sombra meticulosa sobre o porto de uma cidade barroca há muito isolada na Estíria, Áustria. Um lugar onde o tempo escorre em doses homeopáticas e os silêncios são mais profundos e intimistas, como sepulturas d'um cemitério há séculos abandonado. Não há placas luminosas em sua entrada, sequer letreiros; apenas um antigo mausoléu de ferro esculpido à mão em letras góticas, enferrujado pelas estações e coberto de musgo esverdeado e orvalho maciço. O renomado prédio, com sua fachada vitoriana, foi erguido sobre os escombros de um patrimônio cultural: as ruínas de uma capela abandonada. Algo que muitos forasteiros locais, antigos moradores, alunos do internato religioso e os fiéis da atual capela dominical, ainda consideram um mau presságio.
- A Noctem foi fundada pelos Desrosier's, uma família nobre e tradicional, cujos os membros eram frequentemente mencionados envolta de reverência e temor, um medo tão esdrúxulo e autónomo, que já se encontra fossilizado em seus âmagos. Para o público, eles eram nobres, alquimistas, médicos, arquitetos — uma aristocracia intelectual. Às escondidas, porém, sussurros de loucura, segredos indizíveis e uma essência sorumbática os assombravam. Às más línguas diziam que eram amaldiçoados antes mesmo de suas consumações. Os rumores sobre a família instável e desgovernada que vivia isolada numa mansão no fulcro da floresta de Saint-Rémi nunca cessavam. Pelo contrário, eram transmitidos como feitiços orais, recontados a cada novo recinto, como uma lenda que não se finda, mas se renova a cada nova geração.
- Foi nessa atmosfera que Eden foi criado. Uma criança estranha, introspectiva, extremamente caótica por dentro e intensamente apática, com uma visão deturpada do mundo e de si mesmo. Um olhar inominável como o seu era difícil de encontrar. O tipo de orbes que pertence a alguém que havia experimentado a escuridão dos próprios atos e a consequência dos alheios jovem demais. Sempre distante, vivia num limiar predominante somente na fronteira entre o humano e o grotesco. Entre o médico e o cineasta monstruoso. Embora pareça um homem charmoso, refinado, inteligente e educado, com uma elegância beirando a aristocracia, há algo inquieto nele, atrelado para o errático. Um vazio ruidoso por trás da postura cativante, rígida e personalidade incógnita.
- Eden sempre se ressentiu do legado da família. Na adolescência, cogitou renunciar o cargo que era seu por direito. No entanto, ele o herdou. Embora sua motivação para comandar a Noctem permaneça uma pauta ainda comentada, nunca foi completamente esclarecida. Alguns dizem que foi uma vocação passada de sangue. Outros acreditam que foi a maneira mais segura que ele encontrou de permanecer próximo à morte sem nunca se render completamente a ela. O próprio indivíduo, quando questinado, responde apenas com um olhar petrificado, sem esboçar reações concisas, como se soubesse algo que os forasteiros não podem compreender, e um estranho jamais deveria descobrir. E ele, de fato, sabia.
- Tornou-se conhecido por seu toque cirúrgico, delicado, e sua obsessão pela beleza cadavérica. Para ele, os corpos que prepara não são restos mortais, mas obras de arte de inestimável valor emocional. Ele prepara cada cadáver com a devoção de um artista e a precisão de um cirurgião. Eles são tratados como relíquias sagradas em seu santuário pessoal. Como tanatopraxista, realiza pessoalmente todos os procedimentos. Suas mãos são firmes, precisas, e seu trabalho é considerável impecável, até mesmo poético, por alguns. Os cadáveres que saem de sua sala de preparação ostentam uma beleza tuberculosa, ao mesmo tempo, sadia e vil. Um esplendor de características que talvez nunca tenham tido em vida — o que só alimenta ainda mais os rumores acerca de sua pessoa. Alguns falam que ele herdou um dom, outros, um pacto. Mas ninguém ousa indagar, sequer estar para testemunhar à olho nu. Ele é extremamente rígido quanto ao trabalho. Ninguém entra em sua sala de preparação. Ninguém ousa.
- Atualmente, Noctem é inteiramente administrado por Eden. Ele não tem funcionários, sequer atende o telefone com pressa. Mas nunca recusa um corpo, independentemente do seu estado carnívoro e putrefacto. Os funerais que ele organiza, embora breves, são solenes e intensos; cercados por uma atmosfera tão pesada que parece se acomodar nos ombros de todos os presentes. Quem entra no salão principal de Noctem jura que o ar lá é diferente. Mais frio. Mais denso. Mais teatral e melodramático, como se a própria morte respirasse ao lado deles.
- Apesar das lendas, dos contos e das suposições constantes, ninguém jamais cogita outra funerária quando a morte bate à porta. Afinal, dizem que os Desrosier's conhecem a Morte — e que ela os ouve.
jun 16 2025 ∞
jun 18 2025 +