(destacando alguns lapsos que influenciaram sua escrita, apenas)
minha infância, seja como for, não teve nem de longe traços sobrenaturais. à exceção do jardim de brinquedo e dos montes verdes, não foi nem sequer inventiva; vive na minha lembrança principalmente como um período de felicidade monótona e prosaica, e não desperta nada da pungente nostalgia com que recordo minha muito menos feliz meninice. não é a felicidade tranquila, mas a alegria momentânea que glorifica o passado.
a Casa Nova é praticamente um personagem de revelo na minha história. sou um produto de longos corredores, cômodos vazios e banhados de sol, silêncios no piso superior, sótãos explorados em solidão, ruídos distantes de caixas-d'água e tubos murmurantes, e o barulho do vento sob as telhas. além disso, de livros infindáveis.
dizem que a angústia partilhada aproxima as pessoas; mas eu não consigo acreditar que esse efeito seja frequente quanto aqueles que a partilham são de idades muito díspares. se posso confiar na minha própria experiência, a visão da tristeza e do terror adulto tem sobre as crianças um efeito meramente paralisante e alienante.
muito curiosamente, é nesse época, e não na infância mais tenra, que me lembro de ter saboreado com mais gosto os contos de fadas. fui profundamente enfeitiçado pelos anões - os velhos anões de capuzes reluzentes e barbas alvíssimas que tínhamos naqueles dias, antes que arthur rackham elevasse, ou walt disney vulgarizasse, os homenzinhos da terra. eu os visualizava tão intensamente que cheguei mesmo às raias da alucinação; certa vez, andando pelo jardim, por um segundo tive a impressão de que um homenzinho passou correndo por mim, sumindo nas folhagens. fiquei sutilmente alarmado, mas não era como meus medos noturnos. um medo que vigiava o caminho do Mundo das Fadas era algo que eu podia suportar. ninguém é covarde em todos os aspectos.