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“Chaconne”
“Chaconne”, quarta faixa do quarto miniálbum do Enhypen, Dark Blood, é, a meu ver, uma das obras mais expressivas de toda a discografia do grupo. O que torna essa música tão marcante é a forma vívida com que ela constrói seu protagonista: uma figura dilacerada entre o desejo e o desespero. Ele clama por companhia, implora para que “você” seja seu par, mas ao mesmo tempo exala arrogância, prazer e uma solidão incurável. Acima de tudo, está preso em uma escuridão sem fim.
Dentro da mitologia do grupo, entende-se que esse personagem é um vampiro, uma criatura noturna, amaldiçoada pela imortalidade. A própria música se estrutura como o seu relato: a cada verso, refrão e ponte, somos levados a conhecer fragmentos de sua alma, como se estivessemos entrando dentro da mente deles
Análise da Narrativa
A música se inicia com versos em tons sombrios e ressonantes, como se a melodia estivesse ecoando por uma grande sala vazia — o que, em seguida, é justificado pela menção ao castelo em que eles supostamente vivem —, que é acompanhada por alguns acordes.
O primeiro verso os localiza, como supracitado: Jake e Sunoo narram o que parece ser o cotidiano do grupo na ‘casa’ que dividem, mencionando que o castelo é “sombreado pelo sol”. Eles mencionam o que condecora o castelo, como as flores mortas, e indicam um aroma específico deles duas vezes.
No pré-refrão, a canção começa a ganhar intensidade pela primeira vez, com acordes elétricos que trazem a construção de certa expectativa para a sonoridade do refrão. Jay se declara como um monstro para o interlocutor da música, tentando ao máximo soar como se se sentisse indiferente e apático em vista de ser tratado como uma criatura. Jungwon menciona ser “mais brilhante que o sol”, trazendo certa presunção ao eu-lírico, fato que que será visto novamente mais à frente. Ao ouvir a música, consegue-se sentir uma certa urgência nas vozes deles nesse momento, o que (para mim) indica uma representação simbólica dos desejos que permeiam um vampiro.
O grupo tem um histórico longo de uso da dança como representação do sentimento de euforia e/ou de estado catártico, como pode ser visto em “Drunk-Dazed”, por exemplo, que faz menção à esse fator:
“My heart's again in a daze, daze, daze Can't control my body dance, dance, dance”.
Dessa vez não é diferente: Ni-ki introduz o refrão com a sua necessidade de que o interlocutor faça parte dessa dança, que ele também faça parte dessa euforia que ele está sentindo, mencionando também o espelho quebrado, que pode fazer alegoria à morte, assim como as flores previamente citadas por Sunoo. Olhar para alguém por um espelho quebrado também pode significar que o interlocutor nunca será capaz de ver o eu-lírico como um todo, sempre tendo acesso somente aos seus fragmentos e não à verdade.
Heeseung continua fazendo mais menções à essa dança, demonstrando a sua infelicidade com a ideia de pausa-la, e Jay reforça a ideia anterior de que todos querem que o ouvinte participe desse momento com eles. Sunghoon fecha o refrão confirmando para mim que, de certa forma, esse desejo também representa trazer essa pessoa que eles almejam para o ‘lado obscuro’, o que pode fazer referência à todas as dificuldades que permeiam um vampiro.
No segundo verso, Sunoo demonstra mais uma vez certa presunção à menção da morte. A fragrância e as flores voltam como pauta com ele e quando Ni-ki exemplifica esse odor/gosto com as flores antes citadas.
No pré-refrão conseguimos enxergar outro lado do eu-lírico: sua arrogância e desprezo pela morte. É perceptível que todos são soberbos em menção à morte durante a música, mas Sunghoon menciona com todas as palavras que essa ‘dança’ que eles estão praticando realmente diz muito sobre uma certa ironia, que pode ser explicada pela “Dança da Morte”, citada pelo mesmo.
Dance of Death - O que é? “A dança da morte” é um conceito alegórico medieval que representa o poder conquistador e igualador da morte, expresso no drama, na poesia, na música e nas artes visuais da Europa Ocidental, principalmente no final da Idade Média.
Rigorosamente falando, é uma representação literária ou imagética de uma procissão ou dança de figuras vivas e mortas, sendo os vivos dispostos em ordem de sua posição, do papa e do imperador, até a criança, o escriba e o eremita, e os mortos conduzindo-os ao túmulo.
Para o ENHYPEN No contexto da música, o sentido original parece se inverter, quase como se eles estivessem zombando com essa terminologia.
Pra eles, que são vampiros, seres embasados na morte e na eternidade, a dança com a morte não é rendição, mas um desafio. Ao mesmo tempo que pode ser considerado como um paradoxo, visto que eles afirmam estar dançando uma dança que, na maioria de suas representações, é realizada para abraçar a simbologia da morte, sabendo que não vão chegar ao ponto de realmente morrer.
Sunghoon fala em arrogância porque, de fato, há algo de soberbo em quem ousa brincar com o fim. Aquilo que para os mortais é destino inevitável, para eles se torna apenas um jogo, e dessa familiaridade com a morte se abre um quê de orgulho, presunção e soberba por parte deles.
O refrão se repete e Sunoo abre a ponte demonstrando finalmente um ponto de sensibilidade do narrador — até vocalmente falando, seu tom é triste e de certo anseio —, e Heeseung o complementa, deixando claro: tudo isso que estão vivendo é de fato uma maldição. Por mais que a imortalidade traga todos os prazeres possíveis, nunca nada será possivelmente suficiente pra que eles possam se satisfazer de fato. Sunoo e Heeseung são os primeiros a aceitar a dura verdade de que, por mais presunçosos que eles possam parecer ao se demonstrarem apáticos quanto à morte, eles não podem apagar o fato de que estão amaldiçoados.
A fala de Heeseung sugere que a ‘dança’ vai durar pra sempre, e que eles estão condenados à fazerem os mesmos passos, cometerem os mesmos erros, viverem os mesmos dias… Todas as menções ao castelo de repente se tornam uma metáfora para o fato de que eles estão aprisionados em meio à morte (as flores, o espelho quebrado).
Ainda sobre isso, um fato curioso: se você ouvir a música de forma repetida, o início e o fim tem a mesma sonoridade do eco no salão, dando realmente a impressão de loop, reforçando mais uma vez essa fala de Heeseung e a ideia de que eles estão aprisionados numa dança sem fim.
O refrão final, em comparação com os anteriores, mostra progressões significativas na narrativa:
Toda essa gradatividade, para mim, representa essa necessidade de uma companhia nessa maldição. Um pensamento egoísta, mas muito humano. É como se eles estivessem trabalhando em uma manipulação para que, de alguma forma, o ouvinte se enfeitice e seja trazido ao lado obscuro mencionado anteriormente.
Vale mencionar que “again, chaconne, now” é repetido durante toda a extensão da música, trazendo essa ideia de que eles estão tentando manipular alguém pra participar dessa dança de novo… e de novo…
A chacona
Pelo que li e ouvi, a ‘Chaconne’ de Bach tem 256 compassos, centrados numa frase de quatro compassos que se repete com variações infinitas. Nos primeiros compassos o tema principal é ouvido duas vezes em acordes amplos, depois se transforma em passagens rápidas que eventualmente retornam aos acordes iniciais. Córtes dramáticos iluminam a peça: há uma súbita mudança para o modo maior — descrita como um “luz celestial” surja na música — antes de voltar ao modo menor original. Os últimos compassos culminam num uníssono (mesma nota dobrada em duas cordas), que cria um efeito de reconciliação ou “conforto” após toda a jornada.
Em ambos os casos, a ideia de repetição é central: na obra barroca de Bach, um baixo ou acorde curto de quatro compassos se repete continuamente enquanto o violino varia incessantemente o tema. Em “Chaconne” do ENHYPEN, o próprio refrão “chaconne” é repetido várias vezes e até mesmo a melodia no início e fim da música são medidas pensadaspara criar a sensação de ciclo ininterrupto.
Conexão com outras faixas Se a gente observar a discografia do Enhypen, especialmente as faixas “Drunk-Dazed”, “Chaconne” e “Still Monster”, percebe-se um percurso na forma como os protagonistas lidam com sua condição de vampiros:
Essa progressão cria um arco narrativo impressionantemente coerente, que funciona tanto como o desenvolvimento ficcional dos personagens quanto como um reflexo do amadurecimento artístico do grupo.
Coreografia Se analisarmos a coreografia, por fim, uma vez que chacona essencialmente é um termo de dança, existem algumas coerências entre o que já foi supracitado e o restante.