• A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo,

a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode. Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo. Há os que não chegam jamais a ser homens, e continuam sendo rãs, esquilos ou formigas. Outros que são homens da cintura para cima e peixes da cintura para baixo. Mas, cada um deles é um impulso em direção ao ser. Todos temos origens comuns: as mães; todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um — resultado de uma tentativa ou de um impulso inicial — tende a seu próprio fim. Assim é que podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se.

  • Quando se acabou com tudo,

espada e escudo, forma e conteúdo, já então agora dá para dar amor. (Arnaldo Antunes)

  • Temos a arte para não morrer da verdade.

Friedrich Nietzsche

  • O macaco é um animal demasiado simpático para que o homem descenda dele.

Friedrich Nietzsche

  • Meus pés estavam manchados de uma lama que não se

podia limpar no capacho da porta; trazia comigo trevas inteiramente desconhecidas do claro mundo de meu lar.

  • a rachadura se fecham mais tarde; podem cicatrizar e cair no esquecimento; mas em nossa câmara

secreta mais recôndita nunca cessam de sangrar.

  • Quando um animal ou um homem

orienta toda a sua atenção e toda a sua força de vontade para determinado fim, acaba por consegui-lo. O mesmo acontece com o que antes dizíamos. Se observarmos uma pessoa com suficiente atenção, acabaremos por saber mais a seu respeito do que a própria pessoa.

  • Nós, os homens,

temos um campo de ação muito mais vasto e interesses mais amplos do que os animais. Mas também nós nos achamos inscritos num círculo relativamente pequeno e não conseguimos ultrapassá-lo. Posso imaginar muitas coisas, imaginar, por exemplo, que meu maior desejo seria chegar ao Pólo Norte ou algo semelhante; mas só poderei querer isso com suficiente intensidade e realizar esse desejo quando ele realmente existir em mim e todo o meu ser se achar penetrado por ele. Quando isso acontece, quando intentas algo que te é ordenado de dentro do teu próprio ser, acabas por consegui-lo e podes atrelar tua vontade como se fosse um animal de tiro.

  • Somente as idéias que vivemos é que têm

valor.

  • Por isso, cada um de nós tem que encontrar por si

mesmo o "permitido" e o "proibido" relativamente à sua própria pessoa... o que é proibido a cada um de nós.

  • Essa falta de integração no mundo de meus acompanhantes, a

minha solidão em meio a eles, esse entregar-me inerme à minha dor, tinha a sua explicação.

  • "A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que

destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas."

  • Mas era sempre assim: mal uma situação chegava a

agradar-me ou algum sonho me fazia bem, logo perdiam seu encantamento e seu poder, sendo inútil tentar-lhes a renovação. Vivia agora num contínuo ardor de anseios não realizados, numa espera incessante e tensa que chegava amiúde a enlouquecer-me.

  • Meu maior desejo era viver, por fim,

um pouco, dar algo de mim ao mundo exterior, entrar em contacto e em luta com ele.

  • Às escassas afirmações amadurecidas em mim até então na

demanda do verdadeiro fim de minha vida, veio agregar-se agora esta: a contemplação dessas criaturas, o abandono às formas irracionais, singulares e retorcidas da Natureza, despertam em nós um sentimento de consciência do nosso interior com a vontade que as fez nascer e acabam por parecer-nos criações próprias, obras de nosso capricho; vemos tremer e dissolver-se as fronteiras entre nós e a Natureza, e conhecemos um novo estado de ânimo em que já não sabemos se as imagens refletidas em nossa retina procedem de impressões exteriores ou interiores. Nenhuma outra prática nos revela tão singelamente quanto esta até que ponto também somos criadores e como nossa alma participa sempre de uma contínua criação do mundo. Uma mesma divindade indivisível atua sobre nós e a Natureza, e se o mundo exterior desaparecesse, qualquer um de nós seria capaz de reconstruí- lo, pois a montanha e o rio, a árvore e a folha, a raiz e a flor, todas as criaturas da Natureza estão previamente criadas em nós mesmos, provêm de nossa alma, cuja essência é a eternidade, essência que escapa ao nosso conhecimento, mas que se faz sentir em nós como força amorosa e criadora.

  • — Sempre achamos que são demasiadamente estreitos os limites

de nossa personalidade! Atribuímos à nossa pessoa somente aquilo que distinguimos como individual e divergente. Mas cada um de nós é um ser total do mundo, e da mesma forma como o corpo integra toda a trajetória da evolução, remontando ao peixe e mesmo a antes, levamos em nossa alma tudo o quanto desde o princípio está vivendo na alma dos homens. Todos os deuses e todos os demônios que já existiram, quer entre os gregos, os chineses ou os cafres, todos estão conosco, todos estão presentes, como possibilidades, desejos ou caminhos. Se toda a humanidade perecesse, com exceção de uma só criança medianamente dotada, esse menino sobrevivente tornaria a encontrar o curso das coisas e poderia criar tudo de novo: deuses, demônios e paraísos, mandamentos e proibições, antigos e novos Testamentos.

  • Há muita

diferença entre levarmos simplesmente o mundo em nós mesmos e conhecê-lo. Um louco pode expor idéias que lembrem as de Platão e um colegial devoto pode criar em sua imaginação profundas conexões mitológicas que aparecem nas doutrinas dos gnósticos ou de Zoroastro. Mas sem sabê-lo! E enquanto não sabe, é uma árvore ou uma pedra, ou quando muito um animalzinho. Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas. Todos eles revelam possibilidades de chegar a ser homens, mas só quando vislumbram e aprendem a levá-las em parte à sua consciência é que se pode dizer que possuem uma...

  • Sonhei que estava voando, mas não por

faculdade própria, e sim lançado através dos ares por impulso violento que não podia dominar. A sensação desse vôo, deliciosa a princípio, não tardou em transformar-se em medo ao ver-me disparado a alturas vertiginosas. Aí descobria satisfeito que podia regular a ascensão e a descida, conforme retivesse ou deixasse escapar o hálito. Sobre isso disse Pistórius: "O impulso que te faz voar é o nosso grande patrimônio humano, comum a todos. É o sentimento de relação com as raízes de todas as forças. Mas tememos abandonar-nos a ele. É tão perigoso! Por isso quase todos renunciam de bom grado a voar e preferem caminhar, pela escala burguesa, apoiados nos preceitos legais. Tu não. Tu continuas voando corajosamente. E súbito descobres algo maravilhoso: percebes que pouco a pouco te vais assenhoreando do impulso e que junto com a magna força geral que te arrasta há outra força minúscula e sutil que te é própria: um órgão e um timão. Sem ela vagueadas ao acaso pelos ares, como acontece, por exemplo, com os loucos. Eles têm vislumbres mais profundos que os da escala burguesa; mas não possuem a chave, carecem de um timão que lhes permita marcar o rumo, e flutuam á deriva nos espaços. Mas tu não, Sinclair; tu consegues por meio de um órgão novo, de um regulador respiratório.

  • Nessa época, quando tinha meus dezoito anos, era um moço

pouco vulgar, precocemente amadurecido em muitas coisas, mas retardado e inerme ainda em outras mais. Quando me comparava com os demais, sentia-me muitas vezes orgulhoso e satisfeito comigo mesmo, e em outras tantas deprimido e humilhado. Ora me acreditava um verdadeiro gênio, ora fraco do juízo. Não me era possível compartilhar a vida e as alegrias dos outros rapazes de minha idade, e às vezes reprovava asperamente o meu isolamento e sentia profunda tristeza, crendo-me definitivamente afastado de todos os meus semelhantes, com todas as portas da vida irrevogavelmente fechadas para mim.

  • Não há porque te comparares com os demais, e se a natureza te criou para morcego, não

deves aspirar a ser avestruz. Às vezes te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos dos da maioria. Deixa-te disso. Contempla o fogo, as nuvens e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma abandona-te a elas sem perguntares se isso convém ou é do gosto do senhor teu pai ou do professor ou de algum bom deus qualquer. Com isso só conseguimos perder-nos, entrar na escala burguesa e fossilizar-nos.

  • Para o homem consciente só havia um dever:

procurar-se a si mesmo, afirmar-se em si mesmo e seguir sempre adiante o seu próprio caminho, sem se preocupar com o fim a que possa conduzi-lo. Tal descoberta comoveu-me profundamente e foi para mim como o fruto daquela vivência. Muitas vezes havia brincado com imagens do futuro e havia entressonhado os destinos que me estavam reservados, como poeta talvez ou talvez como profeta, como pintor, ou de que modo fosse. E tudo isso era um equívoco. Eu não existia para fazer versos, para rezar ou para pintar. Nem eu nem nenhum homem existíamos para isso. Tudo era secundário. O verdadeiro ofício de cada um era apenas chegar até si mesmo. Depois, podia acabar poeta ou louco, profeta ou criminoso. Isso já não era coisa sua, e além de tudo, em última instância, carecia de todo alcance. Sua missão era encontrar seu próprio destino, e não qualquer um, e vivê-lo inteiramente até o fim. Tudo o mais era ficar a meio caminho, era retroceder para refugiar-se no ideal da coletividade, era adaptação e medo da própria individualidade interior. Essa nova imagem ergueu-se claramente diante de mim, terrível e sagrada, mil vezes vislumbrada, talvez já expressa alguma vez, mas somente agora vivida. Eu era um impulso da natureza, um impulso em direção ao incerto, talvez do novo, talvez do nada, e minha função era apenas deixar que esse impulso atuasse, nascido das profundezas primordiais, sentir em mim sua vontade e fazê-lo meu por completo. Esta, e somente esta, era a minha função.

  • Você não deve entregar-se a desejos nos quais não acredita. Sei

o que deseja. Você tem que abandonar esses desejos ou desejá-los de verdade e totalmente. Quando chegar a pedir tendo em si a plena segurança de alcançar seu desejo, a demanda e a satisfação coincidirão no mesmo instante. Mas você deseja e se reprova, temeroso de seus desejos. Tem que dominar tudo isso.

feb 4 2014 ∞
may 29 2016 +