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"Será que o vaga-lume pisca de dor? Se eu pudesse brilhar de dor eu seria um escândalo."
"Esse ano eu descobri que sou gorda. Ou pelo menos um pouco gorda. Nunca tinha verdadeiramente me dado conta disso, só ia pondo roupas largas e achava que desse jeito ninguém ia perceber, e não tinha importância. Só que eu fui fantasiada de Branca de Neve pra uma peça da escola, e um colega me disse que essa princesa estava muito gordinha. E dentuça. Descobri isso também, o problema com os dentes. Passei a sorrir nas fotos com os lábios fechados, e o resultado é que nenhuma foto deste ano faz o menor sentido."
"Antes de ficar doente, ela era muito sozinha, daí algumas tardes minha mãe me enviava pra fazer companhia pra ela, mas na verdade eu fazia solidão. As duas ali no sofá, quase no escuro, competindo qual solidão conseguia alcançar o teto. Eu acho mesmo que as crianças podem ser mais sozinhas que as velhas."
"Às vezes eu não durmo. Principalmente quando o dia foi tão péssimo que eu não quero que o outro dia chegue porque fico pensando que vai ser pior. Daí, antes de eu desenvolver uma nova técnica, eu comecei a chantagear deus. Mas era uma chantagem estranha porque eu não tinha muito poder e pode ser que pra ele não tivesse importância que uma menina parasse de vez de acreditar nele. Ou pode ser que ele não exista mesmo, eu ainda não decidi, e algo me diz que a minha opinião sobre isso não tem a menor importância pra ele, se ele existir, então eu posso demorar o quanto eu precisar. Eu dizia que se eu não dormisse em quinze segundos, deus não existia. E começava a contar. Cada vez que chegava perto dos quinze, eu dava uma chance pra ele, esticava até trinta, depois até um minuto, afinal ele podia estar ocupado ou não ter me escutado, e quanto mais perto chegava do sessenta mais eu me agitava, um pouco com medo de dormir de repente e depois acor-dar muito assustada com a presença desse deus, mas também, e cada vez mais, com o medo de continuar contando, infinito, a noite inteira, e nunca dormir, mais e mais sozinha, porque não existia deus nenhum me escutando contar."
"Mas dai esse ano eu descobri que a morte pode ser silenciosa, muito mesmo. E tóxica. É possível morrer velho e quieto dentro da própria casa deitado na cama sem tempo de gritar, e dessa morte não sai um aviso, um apito imediato, não, as coisas fora da morte continuam iguais, e essa morte quieta pode ficar três, quatro dias, contaminando as coisas que vão morrendo junto, o colchão, a cama, o piso de madeira, começa a vazar um sangue que não é mais necessário, e vai crescendo um cheiro que parece que nenhum humano vivo consegue suportar, só os mortos."
"Fico pensando quando será que a gente percebe que não vamos dar certo."
"O conhecimento talvez não seja a melhor coisa do mundo, já não sei se quero tanto assim. Lembrei que quando eu aprendi a ler entrei em desespero, porque descobri que não era mais possível olhar as palavras sem ler. Tentei muitas vezes, queria de volta os desenhos-letras jogados pelas ruas. Letreiros e placas e avi-sos, foi uma lição sem volta. Tudo o que as palavras dissessem me tornei obrigada a ouvir. Fico pensando quantas coisas não vou poder nunca mais deixar de saber."