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⊱ ♡ ⊰
meados de agosto,
mil novecentos e setenta e seis.
୨୧
“o sal no ar, e o mofo em sua porta
nunca precisei de nada mais...
suspiros de ‘tens certeza?’
‘nunca estive mais certo...’
mas posso ver-nos perdidos na memória
n’um momento do tempo, agosto fora embora
pois nunca fora meu...
mas posso ver-nos retorcidos em lençóis
como uma garrafa de vinho, agosto fora embora
pois nunca fostes meu...
suas costas sob o sol
eu desejava poder escrever meu nome nelas
ligarás para mim, quando voltarmos à escola?
lembro de pensar que te tive...
quando nós ainda estávamos mudando para o melhor –
anelar era o suficiente
para mim, era o suficiente
viver pela esperança disto tudo...
tanto por um amor de verão e por dizer ‘nós’
mas não eras meu para perder
não eras meu para perder...”
⊱ ♡ ⊰
♡
i.
rebentava à concha da orelha de remus um barítono riso, sublinhando-se em áureo som, um pó de pirilimpimpim dançando entre as verdejantes plumas… despertara-lhe de sua letargia n’um chiste de sacarina, decidindo-se por amorar pelos labirintos do ouvido, entornando – ‘quase como que clamasse’, pensara o moço, n’um suspirado devaneio que capeara ligeiro, ‘quase como que clamasse minha pele adoecida como casa…’ – pelos ramos em suas veias sortidos. a canora melodia, ainda que longínqua e aninhada nos braços de caules às penumbras de macieiras, benzia-se em vizinha endoidecida por carinhar a derme plúmbea e fina que remus tinha; ele não mais sentia as ervas-daninhas, somente a voz a embrenhar-lhe o sangue e a lambear-lhe a silhueta esguia; esquecia do olor chuviscando das margaridas, em transe pelo solar ruído que engendrava sua face em flor enrubescida, anuindo-lhe – ‘bandido imo…’ – perigosamente viciado no estupor cor-de-sol derramando em gargalhadas do inefável sorriso, perigosamente ébrio nos aljofres derramando do vinho que chamava de amigo…
“bu!”, bradara-lhe o amo do timbre penetrando, há anos, seus sonhos, n’uma meiga tentativa de assombro. ‘como se pudesses assustar-me, james,’ ousara pensar, vedando com mais veemência as suas orbes âmbares, n’um estremecer de pálpebras que poderia emaranhar-se à aragem agostina, ‘como se pudesses chocar-me, sendo tu um olímpico, e eu, um mortífero – como se não sentisse por lonjuras eternas o sal laivando tua tez e o ouro pingando de tua risada – como se a ideia de espavorir-me por ti, tal fosses um fantasma cativo ao alçapão de meus medos, fosse-me sequer intimidadora, e não o salvatério que goteja-me em mel, que goteja-me em carmíneo afago – como se eu não adotasse-te, james, enquanto cavaleiro de meus folclores, como se tu não guiastes minha sinfonia em maestro honrado – como se eu não implorasse para ti, terrifica-me, deslumbra-me, fica, fica, fica perto –’
“pensas demais, remus”, james reclamara, e remus abrira a capela de seus olhos para avistá-lo – ele penhorava n’um inclinado tronco de carvalho, o musgo da árvore embaralhando-se à mão longa e mélea, o verde unindo-se ao seu equilíbrio hercúleo e exibido ao balancear-se, com um só braço, nas lianas libertas, sua bronzeada aquarela abraçando a madeira e o sol – ele, james, um com a natureza, um com a paisagem – júbilo, divino, apolíneo... “pensas demais, e dormes demais!”, continuara, adotando seu típico tom dramático, contrastando com a covinha perfurando, leve, a beira de seus lábios.
em um golpe reto e teso comum apenas a um atleta, james saltara, esmerado, do cipó amadeirado e adiantara-se ao seu lado, prosseguindo em ajoelhar-se diante do amigo pálido... “assim acharei que não me amas, meu aluado”, brincara, seu riso peneirando – meu aluado, meu aluado – ele bem sabia, pois, que não havia maior piada; em que mundo james potter seria algo senão amado? “chamo-te para ficares ao meu lado, chamo-te para gozares de meu sol, e ficas aí, à toa sob a sombra, dormindo... sequer me dás atenção, sequer falas comigo...”, e um beicinho ataviara o pecado que era sua boca, emplumando seu rosa discreto e, detrás do cintilo dos óculos, o avelã d’aquelas orbes cintilava, maroto, quase – quase... – lascivo.
“deixe de cena, james...”, o murmúrio saíra afanado e tímido de sua fauce. algo na campina e no ensolarar da tarde lhe implorava por quietude; algo no rosto belo à sua frente lhe afrontava, lhe enrubescia, lhe arrancava uma risada; lhe fazia desejar ser visto, ao mesmo tempo que hialino, bom, ao mesmo tempo que oblíquo...
james, então, esparramara seu talhe na relva, suportando-se no cotovelo e apoiando a face na palma. sob a rajada constelando os ramos do carvalho na grama, o receio empossando o tutano de remus banhava-se à sombra, antagônico às retinas aclaradas pelo fulgor cerúleo, cravando-lhe, penetrando-lhe com a característica índole jocosa de james, porém – corroendo remus com um arrepio – ajaezadas por um quê ligeiramente lancinante, grave e intenso no negrume da pupila.
“o que posso fazer para ter tua atenção? para ter-te perto? hein, remus?”, indagara james, inclinando-se para perto do amigo a cada pergunta capsulada pelo veludo em sua voz. um cativante erguer adornava-lhe os dentes e punha remus seu cativo, seu, seu. “hein, meu aluado...”, e o último sussurro viera como uma aura roçando-lhe as bochechas – james aconchegara-se sobre ele, e a penumbra velando-lhe era, subitamente, provinda somente do tronco sadio e bonito; o eriçar pintando-lhe a tez não mais vinha da brisa, e sim do nariz longo carinhando a lateral de sua fronte, do arfar tateando sua cútis...
sem sequer processar os vultos provocando o palpitar desvairado de seu pulso e o ondular de seus alvéolos, remus sentira o semblante de james separando-se do seu, e uma saudade carente e leviana já insistia em desvencilhar-se, teimosa, do dunquerque em seu peito. “abra os olhos, remus”, a fala persistia quieta, sóbria, tão rara ao tom usualmente arrojado... remus a acatara, mal sabendo que o fazia; nem inferira que havia novamente vedado suas orbes – não parecia reconhecer-se e, talvez, jamais tenha permitido-se fazê-lo, ter tamanha espontaneidade, deixar-se guiar pelas garras do instinto... sinistra, tentava-lhe a ideia de ser, de dar-se, livre, e ter liderando seu corpo um mestre senão a cautela... “isso, abra os olhos... tens o sol neles...”
a loquela de james, tão enlaçada por um soar simultaneamente austero e suave, continuava a acarinhar o corpo de remus tal fosse uma nova brisa; james, majestade deífica, parecia ter engolido as faces do vento e do lume para si, o corpóreo símbolo do verão, com os cílios negríssimos e compridos adornando as esverdeadas írises; remus queria dizer-lhe: ‘james, james, tenho o sol nos olhos pois eles são teus, pois eles falham em entrever qualquer coisa senão tu, james, james...’, mas o corpo do amigo achegava-se mais uma vez ao seu, cada vez mais perto, e a voz decidira por enterrar-se n’uma capela escondida; a prece era muda – james, james –, revelando-se à superfície apenas por bochechas enrubescidas e olhos embebidos, apenas por uma feição desconcertada pintando uma face tímida...
“agora, venha!”, de súbito, o sol-menino rira, levantando-se sobre o remus supino, correndo pela chã de margaridas e pintando o céu com seu gargalho, agora raspando o tenor. “ande, venha comigo!”
e remus fora – atônito e embaraçado, confuso com o exibido afeto de james, esforçando-se para emperrar a frustração e o desejo que, obstinados, alojaram-se em feras inquietas no peito... variegava-lhe, porém, também as cores do riso, como se as tintas flamejantes de james chuviscassem sobre si, e vira-se contagiado pelos portares lépidos do amigo – fora seguindo-o, seguindo-o, imitando-o em pejoso louvor, a lua cheia pesando-lhe a garganta e escolhendo eclipsar-se, temulenta, perante o carnal e movediço calor...
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♡
ii.
mesmo em tempos de veraneio quentes tais aquele, os bosques ingleses eram cobiçosos pelas áqueas bagas descolando das nuvens, e um novo sereno agraciava cada preguiçoso crepúsculo de agosto. não era incomum que os moços açodassem-se para debaixo do chalé para escapar da fina chuva adulando-lhes as peles, a qual seria, tipicamente, apenas um bom banho d’orvalho; contudo, james, em zeloso receio pela frágil higidez do amigo, priorizava os findares nimbosos e vespertinos sob o telhado enfeitando a casa vetusta e campesina. n’um pega-pega descontraído e enfestado por melódicos risos, ambos os garotos entravam pelo umbral, caminhavam pelo chão de madeira, e cochilavam, um terno costume das últimas semanas, nos mantos empoeirados no sofá e na cama, displicentemente aninhados...
remus, vagamente úmido n’uma amalgama de chuva e suor, revirava-se sobre os lençóis finos do colchão. sua soneca era enfestada por solares sorrisos e solares olhares, por memórias d’uma mantilha negra de cílios e fábulas d’um corpo definido e delgado regendo-lhe no ranger da cama... a sua pele pálida avermelhava-se em meio ao estupor nos braços de morfeu, pois os braços que inundavam os sonhos do aneloso eram outros, mais quentes e mais táteis que os de qualquer deus, com o riso cochichado à orelha em resposta aos gemidos orquestrando o desejo – o desejo vadio que expelia em vulgar canto e em santa prece nas pétalas alabastrinas do corpo, “james... james... james...”
o rapaz de cabelos arenosos jamais fora um para sonos leves, o repouso sempre envelopando-lhe n’uma pesada manta, prendendo-o em esforço vão para curar o eviterno de seu cansaço. o estado quimérico que se encontrava era incomum e povoado de quereres cerceados, deixando-o inquieto, movendo-o em dança endoidecida de acordo com o insistente pulsar de suas veias, transferindo o seu mundo – inconsciente, teórico, preso nas ideias – para o enrubescer livre do tangível... a fleuma de sua quietude era substituída por longos, longos lamúrios, arrancando, assim, o concreto james do sono e acordando-o para aquela sinfonia melosa e estranha de murmúrios.
♡
iii.