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pai, eu não sei se isso é uma carta de amor? mas amor de filho também conta, né? de qualquer jeito, antes de escrever isso eu já to com meu olhinho todo marejado, mas eu acho que eu preciso disso pra realmente me sentir completa no dia de hoje, e nos próximos também. não sei como funciona esse negócio quando voce ta morto, se você é capaz de ver as coisas desse plano, vira comida de minhoca ou fica preso no céu, mas espero que isso te ajude ou faça você se sentir melhor de alguma forma.
esse não vai ser um texto complexo ou elaborado, só uma cartinha pra voce onde eu vou falando as coisas quando aparecem na minha mente e umas memórias nossas que marcaram na minha cabeça.
por exemplo esses dias: eu citei você em uma conversa com meus amigos e não tinha como eu sentir mais falta dos fins de semana que eu passava com você. de quando você escondia aquele +4 do uno pra me roubar achando que eu não vi, quando você ia no mercado antes de eu chegar só pra comprar o que eu gostava, quando você adiava todo e qualquer plano pra passar a manhã do sábado comigo, no parque, quando você me ensinou a andar de bicicleta, quando você me levou pela primeira vez no zoologico, quando me levou várias sacolas cheias de roupas no meu aniversário, ou quando a gente fazia massagem um no outro e sempre discutia porque suas costas eram muito maiores que as minhas.
também têm aquelas memórias mais distantes, por exemplo aquela de quando eu tinha uns 6 anos(?) e eu quebrei seu dente, e desde então você usava uma prótese no lugar do dente e eu fui descobrir isso só com meus 13 anos. e aquelas de quando você dirigia o "caminhaozão" e deixava eu pegar no volante naquela curva pertinho de casa.
é engraçado porque eu não tinha consciencia disso antes, mas raciocinando agora eu percebo que em todos os momentos que voce tava comigo, voce tentava passar um pouquinho do que voce sabia pra mim, alem de que voce tava sempre querendo passar algum tempo que fosse comigo.
sei lá sabe, minha lembrança de você é sempre com aquele sorriso de fora, aquele jeitinho de "ei, vamo dar uma voltinha na praça, rafa? te pago um sorvete". voce fazia pra emagrecer, mas no final sempre se rendia ao cornetto de chocomix (aquele com doce de leite).
você era uma completa criança, né? as vezes até mais que eu (a maioria das vezes). até hoje eu não esqueço quando eu e a sua namorada estavamos tentando conter os seus doces porque voce tava de dieta e voce foi correndo com uma embalagem de kid lat pro seu quarto e se trancou la dentro como se tivesse 8 anos. ou também quando você fez uma guerra de chantilly comigo no meio da sua sala de jantar e depois me mandou limpar tudo. acabou que voce limpou tudo sozinho.
eu acho que o que mais me dói de tudo isso é que eu queria que você me conhecesse agora, visse como eu to com as minhas ideias, eu (QUERIA PARAR DE CHORAR TAMBÉM) queria que voce visse como eu mudei e eu tenho certeza que a gente trocaria muita ideia maravilhosa, porque acima de tudo eu tenho toda a lembrança do cara inteligente que você era.
eu admiro? admirava? tanto a sua sabedoria, porque eu sei que você não nasceu numa família com grana, não teve muitas oportunidades boas de estudo de qualidade e foi fazer seu 3º ano do médio com seus vinte e poucos anos (com minha mãe sendo a professora de filosofia e voce a encantando com seus poemas). apesar de tudo isso, não importava o que eu perguntasse pra voce, voce sabia a resposta. e se não soubesse, ia procurar ela na hora.
o ultimo dia que voce me viu, eu lembro dele com flashes. eu ainda morava na outra casa, e você me deu um ovo de páscoa (de ferrero rocher lek) estranhamente adiantado (talvez porque voce sabia que ia morrer naquela noite), você tinha acabado de fazer 50 anos, e eu tinha 14. foi no dia 16/04, e voce fez aniversario no dia 14/04.
você foi tão fofo comigo, tão diferente de como realmente era. passou o dedo bem levemente na minha sobrancelha, disse que eu tava cada vez mais linda e que sentia minha falta (pelos convites de ir pra sua casa que eu neguei).
eu lembro de uma vez que foi nossa primeira conversa séria, sobre os reais motivos de eu não ir pra sua casa. você bem sabia o que você causava com a minha mãe, com a firma em conjunto que voce tinha com ela, com os dias que voce deixava de trabalhar mas não deixava de tirar dinheiro. foi pelo celular, e minhas lágrimas caiam sem eu perceber enquanto eu falava uns "mas eu não quero ir pra sua casa!!" da outra linha, ouvindo você dizer "mas filhinha, eu te amo" e não podendo dizer o mesmo, porque tava tentando ser forte e representar minha mãe ali, afinal, ela tava certa, e você errado. mas não deixava de doer.
no dia que eu recebi a notícia eu tava arrumando as coisas do meu novo quarto (foi exatamente no dia que eu mudei de casa), lembro exatamente da cena de eu tirando os meus livros da caixa e ouvindo minha mae gritar da sala com o telefone na mão: "mas como assim? não brinca desse jeito comigo". 50 anos e um ataque cardíaco. eu tinha perdido o chão, eu não conseguia deixar de deslizar por qualquer parede que eu via e olhar pro nada, tentando assimilar qualquer coisa que parecia real naquele momento.
você morreu na hora, nem deu tempo de eu me preparar, de eu me despedir, de eu pensar na possibilidade de ter um vazio no nome de um pai, da minha vida literalmente mudar por completo, porque todas as vezes que alguém mencionasse pra mim "seu pai" eu teria que falar "minha mãe" e deixar aquele clima, que hoje eu bem conheço, no ar.
queria que voce soubesse, de alguma forma, o quanto eu sou grata por todas as sensações boas que voce me causou, o quanto de risadas voce ja me proporcionou, o quão bem voce já me fez e o quanto e reconheço isso, apesar de todos os pesares, mas essa é uma carta de amor.
eu acho que isso ta bem grandinho já, né? mas não é que nem um artigo de opinião que eu tenha uma conclusão, eu acho então... acho que o que eu tinha pra dizer eu disse, e eu nao sou nem um pouco boa com essas coisas, mas fiz de coração.
pai, eu te amo. e voce não faz ideia do quanto eu odeio esses verbos no pretérito.