► "Talvez, se o homem tivesse a faculdade de escolher um nariz adequado a seu rosto ou se nós, vendo um pobre homem oprimido por um nariz grande demais, para a sua cara mirrada, pudéssemos dizer-lhe: 'Esse nariz fica bem em mim e vou pegá-lo', talvez, digo, eu teria de bom grado trocado o meu, como também os olhos e muitas outras partes da minha pessoa. Mas, sabendo perfeitamente que isso não é possível, resignado ao meu aspecto, não me preocupava com ele."

      • O Falecido Mattia Pascal, Luigi Pirandello

► "... quase tudo o que de grande existia, existia como um 'apesar', realizado apesar de aflição e tormento, pobreza, abandono, fraqueza corporal, vício, paixão e mil obstáculos, era uma experiência, era, por assim dizer, o preceito de sua vida e sucesso, a chave para a sua obra..."

► "... o porte no destino, o garbo no tormento, não significavam apenas uma tolerância; são uma realização ativa, um triunfo positivo, e a figura 'sebastiana' é o símbolo mais belo..."

      • Morte em Veneza, Thomas Mann

► " Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo incongruente "

► "E lendo no dicionário encarnado, onde existiam bandeiras de todos os países e retratos de personagens vultosas, que Nero tinha sido o maior dos monstros, duvidei. Maior que Fernando? A afirmação do livro me embaraçava. Como seria possível medir por dentro as pessoas? E senti pena de Nero, que nunca me havia feito mal. Fernando me atormentava e era péssimo. Talvez não fosse o pior monstro da terra, mas era safadíssimo. [...]. O sujeito se tornou para mim um símbolo - e pendurei nele todas as misérias. Pois um dia minha convicção se abalou profundamente. Os dois empregados abriram caixões na loja. Fernando cochilava no banco, junto ao armário das perfumarias. [...]. Uma das tábuas ficara no chão, crivada de pregos. Fernando levantou-se, apanhou-a, agarrou um martelo, pôs-se a entortar os bicos agudos, a rosnar. Desleixo. Se uma criança descalça pisa naquilo? [...]. Então Fernando não era mau? Pensei um milagre. Julguei ter sido injusto. Fernando, o monstro, semelhante a Nero, receava que as crianças ferissem os pés. Esqueci as torpezas cochichadas, condenei o dicionário vermelho que tinha bandeiras e retratos. Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam ferir os pés das crianças."

      • Infância, Graciliano Ramos

► "Naquela ocasião seu coração vivia; havia saudade nele e uma inveja melancólica e um pouquinho de desprezo e uma felicidade de absoluta pureza."

► "A experiência fê-lo saber que era o amor, apesar de ter certeza que o amor deveria trazer-lhe muita dor, tormentos e humilhações, e que além disso destruía a paz e deixava o coração transbordar com melodias sem que encontrasse sossego para dar forma a alguma coisa inteiriça. Assim mesmo aceitava-o, entregava-se completamente e zelava por ele com as forças de sua alma, pois sabia que o amor enriquecia e dava vida e ele ansiava por ser rico e vivo em vez de na tranquilidade forjar algo concreto..."

► "E rodeava com cautela o altar de sacrifício onde ardia a casta chama do seu amor, ajoelhava-se em frente e atiçava-a e alimentava-a de todos os modos, porque queria ser fiel. E depois de algum tempo, todavia, imperceptivelmente, sem alarde e ruído, ela se apagou. Mas Tônio Kröeger ainda ficou por algum tempo em frente do altar frio, cheio de espanto e desilusão, porque a fidelidade era algo impossível no mundo. Depois encolheu os ombros e seguiu o seu caminho."

      • Tônio Kröeger, Thomas Mann

► "Podia ser ela mesma quando estava só. E era só isto que precisava fazer com frequência: pensar. Bem, nem mesmo pensar. Ficar em silêncio; ficar sozinha. E toda a existência, toda a atividade, com tudo o que possuem de expansivo, brilhante, vocal, se evaporava. Então podia, com uma certa solenidade, retrair-se em si mesma, no âmago pontiagudo da escuridão, algo invisível para os outros. E embora continuasse tricotando, sentada bem ereta, era assim que sentia a si mesma, a seu ser, depois de libertada de todos os laços, pronta para as mais estranhas aventuras. Quando o ritmo da vida diminuia por um instante, parecia que a amplitude das experiências se tornava infinita. E, supunha, todo mundo conseguia sentir esse sentido de possibilidades ilimitadas. Todos eles [...], deviam sentir que nossas aparências - as coisas que nos caracterizam - são simplesmente infantis. Sob elas, tudo é negro, amplo e incomensuravelmente profundo; mas de vez em quando emergimos à superfície, e é assim que as pessoas nos conhecem. [...] Esse âmago da escuridão podia ir a qualquer lugar, pois ninguém o via. Não poderiam detê-lo, pensou, enleada. Lá estavam a liberdade, a paz, e - o que era mais agradável - o poder da recuperação, de descansar numa plataforma de estabilidade. Nem sempre, enquanto indivíduo, é que se encontra esse repouso, dizia-lhe sua experiência [...], mas enquanto recantos de sombra. Desprendendo-se da personalidade, perdia-se tudo, a agitação, a pressa, o rebuliço; e sempre lhe subia aos lábios uma exclamação de triunfo sobre a vida, quando tudo dentro dela se reunia nessa paz, nesse repouso, nessa eternidade; e, detendo-se, seu olhar encontrou no exterior o raio de luz do Farol [...]."

      • Rumo ao Farol, Virginia Woolf

► "Admirava esses enormes globos de luz que parecem a nossos olhos fracas centelhas, enquanto a Terra, que na verdade não passa de um imperceptível ponto no firmamento, apresentava-se à nossa cobiça algo tão grande e nobre. Enxergava então os homens tais como são na realidade: insetos a se devorarem entre si num pequeno átomo de lama."

      • Zadig/O Destino, Voltaire
nov 3 2020 ∞
nov 9 2020 +