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escrito por Florbela Espanca
(...) No gelo da indiferença ocultam-se as paixões / Como no gelo frio do cume da montanhas / Se oculta a lava quente do seio dos vulcões... / Assim quando eu te falo alegre, friamentes / Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranhas / Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!
Meu doido coração aonde vais / No teu imenso anseio de liberdade? / Toma cautela com a realidade; / Meu pobre coração olha cais! / Deixa-te estar quietinho! Não amais / A doce quietação da soledade? / Tuas lindas quimeras irreais / Não valem o prazer duma saudade! / Tu chamas ao meu seio, negra prisão!... / Ai, vê lá bem, ó doido coração / Não te deslumbre o brilho do luar! / Não ´stendas tuas asas para o longe... / Deixa-te estar quietinho, triste monge / Na paz da tua cela, a soluçar!...
Ando perdida nestes sonhos verdes / De ter nascido e não saber quem sou / Ando ceguinha a tatear paredes / E nem ao menos sei quem me cegou! / Não vejo nada, tudo é morto e vago... / E a minha alma cega, ao abandono / Faz-me lembrar o nenúfar dum lago / ´Stendendo as asas brancas cor do sonho... / Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo / E não ver nada nesse mar sem fundo / Poetas meus irmãos, que triste sorte!... / E chamam-nos a nós Iluminados! / Pobres cegos sem culpas, sem pecados / A sofrer pelos outros té à morte!
Por essa vida fora hás-de adorar / Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca / Em infinito anseio hás de beijar / Estrelas d´ouro fulgindo em muita boca! / Hás de guardar em cofre perfumado / Cabelos d´ouro e risos de mulher / Muito beijo d´amor apaixonado; / E não te lembrarás de mim sequer... / Hás de tecer uns sonhos delicados...Hão de por muitos / olhos magoados / Os teus olhos de luz andar imersos!... / Mas nunca encontrarás p´la vida fora / Amor assim como este amor que chora / Neste beijo d´amor que são meus versos!...
Eu sou a que no mundo anda perdida / Eu sou a que na vida não tem norte / Sou a irmã do Sonho, e desta sorte / Sou a crucificada ... a dolorida ... / Sombra de névoa tênue e esvaecida / E que o destino amargo, triste e forte / Impele brutalmente para a morte! / Alma de luto sempre incompreendida!... / Sou aquela que passa e ninguém vê... / Sou a que chamam triste sem o ser... / Sou a que chora sem saber por quê... / Sou talvez a visão que alguém sonhou. / Alguém que veio ao mundo pra me ver / E que nunca na vida me encontrou!
Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste: / "Parece Sexta-feira da Paixão. / Sempre a cismar, cismar, d´olhos no chão / Sempre a pensar na dor que não existe... / O que é que tem?! Tão nova e sempre triste! / Faça por ´star contente! Pois então?!..." / Quando se sofre, o que se diz é vão... / Meu coração, tudo, calado ouviste... / Os meus males ninguém mos adivinha... / A minha dor não fala, anda sozinha... / Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!... / Os males d´Anto toda a gente os sabe! / Os meus...ninguém... A minha dor não cabe / Nos cem milhões de versos que eu fizera!...
Procurei o amor, que me mentiu. / Pedi à vida mais do que ela dava; / Eterna sonhadora edificava / Meu castelo de luz que me caiu! / Tanto clarão nas trevas refulgiu / E tanto beijo a boca me queimava! / E era o sol que os longes deslumbrava / Igual a tanto sol que me fugiu! / Passei a vida a amar e a esquecer... / Atrás do sol dum dia outro a aquecer / As brumas dos atalhos por onde ando... / E este amor que assim me vai fugindo / É igual a outro amor que vai surgindo / Que há-de partir também... nem eu sei quando...
(...) E esta ânsia de viver, que nada acalma / É a chama da tua alma a esbrasear / As apagadas cinzas da minha alma!
Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: aqui...além... / Mais este e aquele, o outro e toda a gente... / Amar!Amar! E não amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!... / Prender ou desprender? É mal? É bem? / Quem disser que se pode amar alguém / Durante a vida inteira é porque mente! / Há uma primavera em cada vida: É preciso cantá-la assim florida / Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar. / E se um dia hei de ser pó, cinza e nada Que seja a minha noite uma / alvorada, Que me saiba perder... pra me encontrar...
Perdi meus fantásticos castelos / Como névoa distante que se esfuma... / Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los: / Quebrei as minhas lanças uma a uma! / Perdi minhas galeras entre os gelos / Que se afundaram sobre um mar de bruma... / - Tantos escolhos! Quem podia vê-los? – / Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma! / Perdi a minha taça, o meu anel / A minha cota de aço, o meu corcel / Perdi meu elmo de ouro e pedrarias... / Sobem-me aos lábios súplicas estranhas... / Sobre o meu coração pesam montanhas... / Olho assombrada as minhas mãos vazias...
Rasga esses versos que eu te fiz, amor! / Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento / Que a cinza os cubra, que os arraste o vento / Que a tempestade os leve aonde for! / Rasga-os na mente, se os souberes de cor / Que volte ao nada o nada de um momento! / Julguei-me grande pelo sentimento / E pelo orgulho ainda sou maior!... / Tanto verso já disse o que eu sonhei! / Tantos penaram já o que eu penei! / Asas que passam, todo o mundo as sente... / Rasgas os meus versos... / Pobre endoidecida! / Como se um grande amor cá nesta vida / Não fosse o mesmo amor de toda a gente!