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o livro das semelhanças de Ana Martins Marques
eu falava sobre as noites perdidas na companhia de alguém / que nunca era você
Estas são palavras que eu não / deveria dizer / palavras que ninguém / devia ouvir / que elas permanecessem no silêncio/ de onde vêm / no fundo escuro da língua / cheio de doçura e ruídos / com o ranço informulado / dos segredos / por via das dúvidas escondi-as aqui / neste poema / onde ninguém as vai encontrar /
E então você chegou / como quem deixa cair / sobre um mapa / esquecido aberto sobre a mesa / um pouco de café uma gota de mel / cinzas de cigarro / preenchendo / por descuido / um qualquer lugar até então / deserto
Você fez questão / de dobrar o mapa / de modo que nossas cidades / distantes uma da outra / exatos 1720 km / fizessem subitamente / fronteira
Combinamos por fim de nos encontrar / na esquina das nossas ruas / que não se cruzam
Amar / profundamente / mas testar / volta e meia / se ainda / dá pé
Quebrar promessas / e ao recolher os cacos / discerni-los / entre aqueles / do silêncio / quebrado
Podemos atear fogo / à memória da casa / desaprender um idioma / palavra por palavra / podemos esquecer uma cidade / suas ruas pontes armarinhos / armazéns guindastes teleféricos / e se ela tiver um rio / podemos esquecer o rio / mesmo contra a correnteza / mas não podemos proteger com o corpo / um outro corpo do envelhecimento / lançando-nos sobre a lembrança dele
(...) — é dos solitários o amor
(...) É possível terminar uma frase com um beijo assim como é possível / encerrar subitamente uma dança com uma palavra / seria preciso então entender o beijo como um elemento gramatical / acrescentar as palavras entre os movimentos básicos da dança / Quanto do desejo mora na palavra desejo?
(...) Tão cedo era tarde demais
(...) você conhece muitas coisas você sabe falar / sobre as coisas como esses bichos que conhecem / desde sempre as rotas ancestrais / como os pássaros que trazem impressos no corpo / os mapas migratórios você conhece a língua do amor / que eu soletro tão mal
é bom ficar de vez em quando para dormir / na casa de um amigo / usar uma velha camiseta dele habitar / alguns de seus hábitos / usar à noite se possível / um de seus sonhos recorrentes / (...) é bom topar de repente com um tanto de areia / no bolso de uma calça jeans / que há tempos não usamos / seguir as instruções do horóscopo de um signo / que rege um dia em que não nascemos / vestir-nos de acordo com a previsão do tempo / de uma cidade que nunca pensamos visitar / é bom ao menos uma vez na vida fazer uma viagem / em companhia de um parente morto
Pense em quantos anos foram necessários para chegarmos a este ano / quantas cidades para chegar a esta cidade / e quantas mães, todas mortas, até tua mãe / quantas línguas até que a língua fosse esta / e quantos verões até precisamente este verão / este em que nos encontramos neste sítio / exato / à beira de um mar rigorosamente igual / a única coisa que não muda porque muda sempre / quantas tardes e praias vazias foram necessárias para chegarmos ao vazio / desta praia nesta tarde / quantas palavras até esta palavra
o passado ao contrário dos gatos / não se limpa a si mesmo
Há estes dias em que pressentimos na casa / a ruína da casa / e no corpo / a morte do corpo / e no amor / o fim do amor / estes dias / em que tomar o ônibus é no entanto perdê-lo / e chegar a tempo é já chegar demasiado tarde / não são coisas que se expliquem / apenas são dias em que de repente sabemos / o que sempre soubemos e todos sabem / que a madeira é apenas o que vem logo antes / da cinza / e por mais vidas que tenha / cada gato / é o cadáver de um gato / E no entanto / a ideia geral do sono / essa ilusão de recomeço / ter a cada dia que escolher as calças / e a cara / que poremos / alguma coisa que se aprende / mínima que seja / inútil que seja / uma pessoa vista pela segunda vez / uma palavra desconhecida / de repente encontrada / o fato de que amanhã virás / possivelmente
o que fazer do desejo / que não se gastou? / alegria não sentida amor não feito / prazer adiado sine die / como parece banal agora / o que o barrou / compromissos decência covardia / não foi nada disso que ficou / mas precioso aceso / e perfeito / restou o desejo do amor / não feito
ela disse / aqueles que nasceram longe / do mar / aqueles que nunca viram / o mar / que ideia farão / do ilimitado? / que ideia farão / do perigo? / que ideia farão / de partir? / pensarão em tomar uma estrada longa / e não olhar para trás? / pensarão em rodovias / aeroportos / postos de fronteira? / quando disserem / quero me matar / pensarão em lâminas / revólveres / veneno? / pois eu só penso / no mar
sei que a intimidade é o nome que se dá / a uma infinita distância
levamos conosco / palavras que já não usamos / planos que já não temos / mulheres que não amamos / pai morto / cachorro morto / amigos mortos / como um velho centauro / que levasse a passeio / seu rabo / morto / de cão / seus olhos / mortos / de pássaro
se houvesse / um acervo / de acidentes / um herbário / de esperas / um zoológico / de ferozes alegrias / se houvesse / um depósito / de detalhes / um álbum / de fotografias / nunca tiradas
o modo como no seu apartamento as coisas sempre parecem estar em casa / e você sempre parece estar de visita / o modo como apesar de tudo isso você não se parece com ninguém / a não ser talvez com certas coisas / similares a nada
queríamos tanto / tão pouco / tomamos o ônibus / no último minuto / viajamos / lado a lado / como numa edição / bilíngue
Ao me beijar / esqueceu uma palavra em minha boca / Devo guardá-la / embaixo da língua? / engoli-la como um comprimido / a seco? / mordê-la até sentir / seu gosto de fruta / estrangeira, especiaria, álcool / duvidoso? / devolvê-la / num beijo / a ele? / a outro?
você me pede para não falar de amor / eis que tenho agora uma ocupação / não te ver, não te telefonar / não pensar em você / tudo isso dá algum trabalho / você me pede para não falar de amor / eu atendo porque devo te amar / em lugar de amar o meu amor / porque no amor não deve valer a lei do mais forte / nem mesmo a do mais forte amor / porque é solitário estar sozinho num dueto / não falar de amor me mantém ocupado / os animais do zoológico fazem isso melhor do que eu
tenho recolhido cacos / tenho observado brevemente seu formato / pensando que acontecer é irreversível / pensando em como é fácil destroçar / tenho embrulhado os cacos com jornal / para que ninguém se machuque / como minha mãe me ensinou / como se fosse mesmo possível / evitar os cortes / (mas que não seja eu a ferir) / tenho andado a tentar / não me ferir e não ferir os outros / enquanto esgoto o estoque de copos / (...) tenho andado com cuidado / com os olhos no chão / à procura de algo que brilhe / e tenho quebrado copos / é o que tenho feito
há insônias planejadas e noites que se estendem / como uma luva longa / penso em tudo o que existe / e no pouco que sabemos sobre tudo / (...) penso / com os prédios à direita / e o mar à esquerda / que um dia o amor terminará / e penso que isso não é triste / para o mar / penso que o mar não escolhe / entre a nau e o naufrágio / como para a primavera é indiferente / o mel ou as abelhas / como as mulheres que foram amadas / em duas línguas / os pássaros enlouquecem em pleno voo / o desejo é imenso e no entanto / penso / também não durará