writed by joão ricardo pedro

- Duarte conhecia aquela música por dentro. Intimamente. Como se conhece a casa que se habita, ao ponto de se poder caminhar às escuras dentro dela, ou de olhos fechados. Guiado exclusivamente pela memória. Uma memória que não era bem uma memória, seria mais um reconhecimento. Porque quando os dedos começavam a tactear, ainda que pela primeira vez, uma determinada obra, não só aquela, mas qualquer obra de Beethoven, nunca o faziam com o deslumbramento de uma descoberta, com a excitação de quem se lança numa aventura, mas com a serenidade de quem se movimenta num espaço que lhe é confortavelmente familiar. Talvez por isso, por essa falta de atrito, por essa ausência de confronto, de dialogo, Duarte nunca tenha pensado em Beethoven como um homem. Um homem que tivesse realmente existido. Conhecia-lhe as datas de nascimento e de morte. As datas e os locais. Conhecia-lhe também os traços fisionómicos, por intermédio de meia dúzia de gravuras. Conhecia-lhe ainda os números: cinco concertos, trinta e duas sonatas, não sei quantas bagatelas. Mas nunca o imaginara sentado ao piano, a experimentar compassos, a gatafunhar colcheias, a inventar codas e cadenzas. Com dúvidas sobre uma determinada nota. A enveredar por uma solução em detrimento de outra. Nunca sentira a presença de uma alma humana por detrás daquela música. Nunca a pressentira, sequer. Duarte tocava Beethoven como quem resolve os enigmas da penúltima página de um jornal. Num estado de absoluta indiferença face à mão engenhosa que os criara. E apesar disso, ou por causa isso, eram cada vez em maior número aqueles que, nos intricados corredores do conservatório de Lisboa, ainda meio atordoados, ainda meio embasbacados, ainda meio incrédulos, garantiam que Duarte, sem a menor sombra de dúvida, iria ser o maior beethoveniano do seu tempo.

- E isso era tanto mais surpreendente, quanto grande parte do seu triunfo provinha da capacidade, inconsciente, é certo, de subtrair à música de Beethoven, o próprio Beethoven. Assim que terminou o último andamento da sonata vinte e seis, todo o auditório se mostrou rendido ao seu talento. Choviam gritos e aplausos. Havia lágrimas na plateia. Mas se alguém se atrevesse a subir os três degraus que conduziam ao pequeno palco onde Duarte agradecia com demoradas vénias, e lhe perguntasse qual o seu maior sonho, o mais certo seria Duarte responder que não tinha um grande sonho, mas dois: o Sporting ganhar a taça dos campeões europeus, e o Índio ser reconhecido, um dia, como o maior artista do seu tempo.

- E o próprio pai começou a encher o frasquinho com cinzas, enquanto ia dizendo: «Porque um dia terás dúvidas. Um dia, quando menos esperares, começarás a duvidar se tudo terá realmente acontecido. Ou se não será apenas um sonho. Vais acordar alagado em suores. A memória, em alturas dessas, não ajuda grande coisa. É então que pegas nisto», e estendeu-lhe o frasquinho atestado de cinzas. E acrescentou: «Quem me dera ter meia dúzia de frasquinhos como este».

- Apetecia-lhe chorar. Apetecia-lhe vomitar até. Para ele, ser órfão era a coisa mais triste do mundo. Pior do que não ter um braço. Pior do que ser cego de um olho. Pior, mas um mal da mesma natureza: uma anomalia, uma deformidade. Além disso, na cabeça dele, o facto da mãe ser órfã aumentava a probabilidade de ele vir a ser órfão também. Como se se tratasse de uma doença hereditária. Só por milagre escaparia.

- O inspetor Artur Monteiro disse: «E já nos bastam as nossas lembranças para nos moerem o juízo, para agora andarmos a sofrer com as lembranças dos outros».

- O soldado Monteiro perguntou-lhe como é que se podia esquecer tudo acerca de uma pessoa, e, no entanto, lembrarmo-nos do seu rosto, até ao mais ínfimo detalhe.

- (...) Mas sempre mantivera a esperança de que chegaria o momento em que já não podiam acontecer mais coisas más, porque já tinham acontecido todas.

jun 2 2013 ∞
nov 17 2013 +