protagonistas mulheres, tecidas pelo rigor literário de meu autor favorito, machado de assis: o bruxo do cosme velho, o analista da alma humana

lívia, de “ressurreição”

”lívia tem esse defeito capital: é romanesca. traz a cabeça cheia de caraminholas, fruto naturalmente da solidão em que viveu nestes dois anos e dos livros que há de ter lido. faz pena porque é boa alma. (…) tinha efetivamente um ar de rainha, uma natural majestade, que não era rigidez convencional e afetada, mas uma grandeza involuntária e sua. a impressão de félix foi boa e má; achou-lhe uma beleza deslumbrante, mas pareceu-lhe ver através daquele rosto senhoril uma alma altiva e desdenhosa.”

guiomar, de “a mão e a luva”

”via-lhe a face cor de leite, sobre a qual se destacava a cor escura dos cabelos, não penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabeça, com aquele desleixo matinal que faz mais belas as mulheres belas. (…) valia a pena, entretanto, contemplar aqueles grandes olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas pestanas, não maviosos nem quebrados, como ele os cuidara ver, mas de uma beleza severa, casta e fria. valia a pena admirar como eles comunicavam a todo o rosto e a toda afigura um ar de majestade tranqüila e senhora de si. não era ela uma dessas belezas que, ao mesmo tempo que subjugam o coração, acendem os sentidos; falava à inteligência primeiro do que ao coração, tanto a arte parecia haver colaborado com a natureza naquela criatura, meia estátua e meia mulher.”

helena, de seu livro homônimo

”era uma moça de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima da mediana, talhe elegante e atitudes modestas. a face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasião tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princípio mais rubros, natural efeito do abalo. as linhas puras e severas do rosto parecia que as traçara a arte religiosa. se os cabelos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranças lhe caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos alçassem as pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a israel as mensagens do senhor. não exigiria a arte maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. uma só coisa pareceu menos aprazível ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não era pequeno.”

iaiá garcia, de seu livro homônimo.

”contava onze anos e chamava-se lina. O nome doméstico era Iaiá. no colégio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com igual nome, acrescentavam-lhe o apelido de família. esta era iaiá garcia. era alta, delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da andorinha. a boca desabrochava facilmente em riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade.”

virgília, de “memórias póstumas de brás cubas.

”naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. não digo que ia lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. era isto virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, — devoção, ou talvez medo; creio que medo.”

lalau, da novela “casa velha”

”realmente, era uma criatura adorável, espigadinha, não mais de dezessete anos, dotada de um par de olhos, como nunca mais vi outros, claros e vivos, rindo muito por eles, quando não ria com a boca; mas se o riso vinha juntamente de ambas as partes, então é certo que a fisionomia humana confirmava com a angélica, e toda a inocência e toda alegria que há no céu pareciam falar por ela aos homens.”

sofia, de “quincas borba”

”era daquela casta de mulheres que o tempo, como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai polindo ao passar dos longos dias. essas esculturas lentas são miraculosas; sofia rastejava os vinte e oito anos; estava mais bela que aos vinte e sete; era de supor que só aos trinta desse o escultor os últimos retoques, se não quisesse prolongar ainda o trabalho, por dois ou três anos. os olhos, por exemplo, (…) agora, parecem mais negros, e já não sublinham nada; compõem logo as coisas, por si mesmos, em letra vistosa e gorda, e não é uma linha nem duas, são capítulos inteiros. a boca parece mais fresca. ombros, mãos, braços, são melhores, e ela ainda os faz ótimos por meio de atitudes e gestos escolhidos. uma feição que a dona nunca pôde suportar, (…) o excesso de sobrancelhas, — isso mesmo, sem ter diminuído, como que lhe dá ao todo um aspecto muito particular. traja bem; comprime a cintura e o tronco no corpinho de lã fina cor de castanha, obra simples, e traz nas orelhas duas pérolas verdadeiras,”

capitu, de “dom casmurro”

”criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. (…) capitu era capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem.”

flora, de “esaú e jacó”

”quem a conhecesse por esses dias, poderia compará-la a um vaso quebradiço ou à flor de uma só manhã, e teria matéria para uma doce elegia. já então possuía os olhos grandes e claros, menos sabedores, mas dotados de um mover particular, que não era o espalhado da mãe, nem o apagado do pai, antes mavioso e pensativo, tão cheio de graça que faria amável a cara de um avarento. põe-lhe o nariz aquilino, rasga-lhe a boca meio risonha, formando tudo um rosto comprido, alisa-lhe os cabelos ruivos, e aí tens a moça flora.”

fidélia, de “memorial de aires”

”fidélia não deixou inteiramente o luto; trazia às orelhas dous corais, e o medalhão com o retrato do marido, ao peito, era de ouro. (…) ao vê-la agora, não a achei menos saborosa que no cemitério, e há tempos em casa de mana rita, nem menos vistosa também. parece feita ao torno, sem que este vocábulo dê nenhuma idéia de rigidez; ao contrário, é flexível. (…) tem a pele macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal à viuvez.”

dec 19 2022 ∞
jan 10 2023 +