- "A experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade e portanto a relatividade do espaço. Já não é possível nenhuma verdadeira orientação, porque o “ponto fixo” já não goza de um estatuto ontológico único; aparece e desaparece segundo as necessidades diárias. A bem dizer, já não há "Mundo”, há apenas fragmentos de um universo fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de “lugares”mais ou menos neutros onde o homem se move, forçado pelas obrigações de toda existência integrada numa sociedade industrial"
(ELIADE,1992)
- "Assim veio ao mundo o capital triunfante, suando sangue e lama por todos os poros"
(MARX, 1867)
- "[...] Quando Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário, então recortei dois peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada, no aquário dentro d'água, não os mesmos, a cada semana recorto novos peixes de papel pardo, não quero mais ver muita coisa viva, peixes lustrosos não, nem gerânios maçãs romãs, nem sumos, suculências, nem laranjas [...] Há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade - quadrados negros pontilhados de negro - alguém-mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho
Hillé, andam estranhando teu jeito de olhar que jeito? você sabe é que não compreendo não compreende o quê? não compreendo o olho, e tento chegar perto Também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nesta vila onde moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, o que é ir e vir, para onde Ehud, o que são essas senhoras velhas, os ganidos da infância, os homens curvos, o que pensam de si mesmos os tolos, as crianças, o que é pensar, o que é nítido, sonoro, o que é som, trinado, urro, grito, o que é asa hen? Lixo as unhas no escuro, escuto, estou encostada à parede no vão da escada, escuto-me a mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não compreendo, pulsam, respiram, há um código no centro, um grande umbigo, dilata-se, tenta falar comigo, espio-me curvada, windsflowers astonished birds, my name is Hillé [...] Se Ehud Foi algum dia, continua sendo, se não Foi, NUNCA SERIA, mas antes de ser Ehud não era, e então depois Foi não sendo? As horas. Êxtase. Secura. Ardi diante do lá fora, bebi o ar, as cores, as nuances, parei de respirar diante de uns ocres, umas fibras de folha, uns pardos pequeninos, umas plumas que caíam do telhado, branco-cinza, cinza-pedra, cinza-metal-espelhado, e tendo visto, tendo sido quem fui, sou esta agora? Com foi possível ter sido Hillé, vasta, afundando os dedos na matéria do mundo, e tendo sido, perder essa que era, e ser hoje quem é? Quem a mim me nomeia o mundo? Estar aqui no existir da Terra, nascer, decifrar-se, aprender a deles adequada linguagem, estar bem não estou bem, Ehud ninguém está bem, estamos todos morrendo [...]" (Em: A obscena senhora D, Hilda Hilst, 1982)
- O que ficava oculto era o essencial: nós, vocês, completamente sob o efeito do encantamento, possuídos, erotizados, exaltados, assustados, amando, sofrendo, fruindo, odiando, não deixamos de saber que estamos numa poltrona contemplando um espetáculo imaginário: VIVEMOS O CINEMA DENTRO DE UM ESTADO DE DUPLA CONSCIÊNCIA. Esse estado de dupla consciência, ainda que evidente, não o captamos, não o analisamos, porque o paradigma da disjunção nos impede de conceber a unidade de duas consciências antinômicas em um mesmo ser. O que é preciso indagar precisamente é o fenômeno espantoso no qual a ilusão de realidade inseparável da consciência de que ela é realmente um ilusão, sem no entanto que essa consciência mate o sentimento de realidade. (MORIN, Edgar, 1956 p.15)