NOTAS AO TEXTO: MULHERISMO AFRICANO: PROPOSTA ENQUANTO EQUILÍBRIO VITAL A COMUNIDADE PRETA

"Aqui observamos um fator interessante quando pensamos a comunidade negra como um corpo único, embora heterogêneo. Fazer co-existir o feminino e o masculino dentro da existência mútua na comunidade reduzirá alguns problemas e, provavelmente, fará surgir outros. Os processos de aquilombamento garantem à comunidade preta uma aproximação mais constante com a nossa ancestralidade, identidade e intersubjetividade. Fica certo que criar essas rivalidades entre homens e mulheres pretes no campo de gênero, nos afastará da maior preocupação: a continuidade do semiocídio da população preta brasileira e a luta antirracista e anti-genocida. Ao nos atentarmos para isso, percebemos que travar discussões baseadas nas concepções ocidentais nos afasta de nossa agência e da prática real de quilombo: povoação e a união entre pretes."

parece que aqui temos todos os problemas centrais dessa concepção:

1) uma visão de corpo baseada numa "energia masculina e feminina" que precisa ser "harmonizada": a) povo como corpo? b) harmonia interna? e a transformação? c) qual é o papel dessa heterogeneidade interna, se a coisa está pacificada numa harmonia entre duas energias?;

2) esse argumento profundamente antifeminista de que é a crítica do gênero que cria a rivalidade entre homens e mulheres, e não que ela está dada: a) argumentou-se antes que a harmonia homem-negro-mulher-negra estava pautada numa noção de solidariedade que surgiu justamente da Maafa. acho isso profundamente questionável, porque a experiencia nos mostra que as coisas não são bem assim, há conflito entre homem e mulher preta na sociedade. porém, a estratégia é argumentar que o conflito surge porque o homem negro introjeta o ser-branco e, por causa disso, oprime a mulher. novamente, a introjeção do ser-branco no homem negro aconteceu NA MAAFA, de forma com que cabe a pergunta: onde está a solidariedade?

3) argumenta-se que o processo de aquilombamento seria, então, a solução desse problema. acontece que o aquilombamento está fundamentado num resgate de valores perdidos na MAAFA, com base principalmente na concepção do matriarcado original do Diop. portanto, o aquilombamento significa que a mulher negra deveria ocupar seu lugar "matrigestor", dado que é da mulher o lugar de conseguir produzir essa gestão de modo a preservar a harmonia do lugar: "Pensando no termo reunir, poderíamos nos arriscar a afirmar que, enquanto a família nuclear desenha um triângulo, a família por “extensão” desenha a imagem abarcadora, íntima e acolhedora de um círculo, o qual, numa leitura simbólica, vem associado ao ventre materno. A imagem que depreenderíamos daí seria a de várias mulheres em torno de uma só figura - a materna - formam um grande círculo a abraçar e proteger seus inúmeros filhos: a imagem de uma Grande Mãe." É por conta desse ventre materno SIMBÓLICO (!) que a harmonia se garante. Impossível não se perguntar como isso não é profundamente cristão na própria raiz da concepção, isto é, como isso não é justamente a legitimação das regras de gênero que vemos na atual sociedade. Do ponto 2 infere-se que o próprio questionar dessa ideia é o rivalizar das mulheres em relação aos homens, ou seja, que a manutenção da harmonia DEPENDE da aceitação feminina desse lugar do cuidado e que, portanto, o assentimento é totalmente compulsório para a manutenção da ordem. Opor-se a isto é opor-se à harmonia que se busca pelo aquilombamento. Não tenho como não achar isso PROFUNDAMENTE problemático.

4) A prática de quilombo é definida como: "povoação e união entre pretes": a) povoação? O texto toda hora argumenta no sentido de que essa posição não se refere ao corpo da mulher, mas a uma ideia de vagina simbólica. Que simbolismo é esse que argumenta que a real prática de quilombo é povoar baseado em tudo o que a gente já viu? A posição da mulher aqui é claramente uma posição reprodutiva e gestora, ou seja, caberia a ela (na união com o homem) reproduzir filhos e gerir a família. Como é que isso não pode ser interpretado como um dispositivo de gênero extremamente sofisticado a manutenção da dominação masculina? b) União? Que união é essa que depende do assentimento silencioso de uma das partes? A discussão da masculinidade no próprio texto é relegada ao homem, que deveria fazer a crítica de si mesmo, uma vez que, segundo o próprio texto, a relação de homem-mulher negros na MAAFA é de solidariedade e não de opressão. Como é que esse discurso pode se sustentar?

5) Um adendo: toda essa concepção é extremamente heterossexual, nem preciso dizer. Por mais que o texto assuma que todos nós temos energias masculinas e femininas que vivem, dentro de nós, em harmonia, fica bem claro pela proposta do que é esse "aquilombamento real" é a reprodução e união homem-mulher negros pautada na constituição de famílias - não está em discussão aqui se a família é ou não ampliada, mas me parece que é uma concepção de família bem interessante, não-nuclear que, ao mesmo tempo, não se explicita no texto. A ideia de que o corpo é internamente harmonizado nessas tais "energias masculinas e femininas", fica muito claro que a concepção central do corpo-quilombo é uma harmonia dessas energias num sentido extremamente heterossexual. Mas vou deixar a discussão LGBT de fora for now.

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sobre o ponto 1.c.: a heterogeneidade, nessa concepção "corporal" de diferença, fica relegada a uma heterogeneidade funcional. ou seja, há o diferente que, enquanto todo, cumpre uma função nesse todo. recupera-se, na progressão do argumento, toda uma ideia funcionalista da diferença que, enquanto diferença radical jamais pode existir. existe como diferença operante, num espaço designado pelo todo. (cf. Durkheim)

jun 16 2021 ∞
jun 19 2021 +