list icon
  • Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável.
  • eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida; que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso. Minha boca espumava, mas, se alguém me trouxesse alguma bonequinha, me desse chazinho com açúcar, é possível que me acalmasse. Ficaria até comovido do fundo da alma, embora, certamente, depois rangesse os dentes para mim mesmo e, de vergonha, sofresse de insônia por alguns meses. É hábito meu ser assim.
  • Dizei-me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer? Resposta: de si mesmo. Então, também vou falar de mim.
  • Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno.
  • Mas é exatamente neste frígido e repugnante semidesespero, nesta semicrença, neste consciente enterrar-se vivo, por aflição, no subsolo, por quarenta anos; nesta situação intransponível criada com esforço e, apesar de tudo, um tanto duvidosa, em toda esta peçonha dos desejos insatisfeitos que penetraram no interior do ser; em toda esta febre das vacilações, das decisões tomadas para sempre e dos arrependimentos que tornam a surgir um instante depois, em tudo isto é que consiste o sumo daquele estranho prazer de que falei. Este prazer é a tal ponto sutil, e a tal ponto às vezes inapreensível à consciência, que as pessoas um pouquinho limitadas ou mesmo simplesmente as de nervos fortes não compreenderão dele nem um pouco sequer. “Talvez não compreendam também aqueles”, acrescentareis com um sorriso largo, “que nunca foram esbofeteados”, e deste modo aludireis delicadamente a que, em minha vida, eu provavelmente sofri também bofetadas e que falo com conhecimento de causa. Juro por tudo que pensais assim.
  • “Não é possível”, vão gritar-vos, “não podeis rebelar-vos: isto significa que dois e dois são quatro! A natureza não vos pede licença; ela não tem nada a ver com os vossos desejos nem com o fato de que as suas leis vos agradem ou não. Deveis aceitá-la tal como ela é e, consequentemente, também todos os seus resultados. Um muro é realmente um muro... etc. etc.” Meu Deus, que tenho eu com as leis da natureza e com a aritmética, se, por algum motivo, não me agradam essas leis e o dois e dois são quatro? Está claro que não romperei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças para fazê-lo, mas não me conformarei com ele unicamente pelo fato de ter pela frente um muro de pedra e de terem sido insuficientes as minhas forças.
  • Tenho, por exemplo, um amigo... Eh, senhores, é vosso amigo também; e de quem, de quem ele não é amigo?! Preparando-se para uma ação, esse cavalheiro no mesmo instante vos há de expor, de modo claro e enfático, como precisamente ele deve agir, de acordo com as leis da razão e da verdade. Mais ainda: perturbada e apaixonadamente, há de vos falar dos reais e normais interesses humanos; censurará, troçando, dos míopes e estúpidos que não compreendem as suas vantagens nem o verdadeiro significado da virtude; e, passado exatamente um quarto de hora, sem qualquer pretexto súbito, exterior, mas devido a algo interior, mais forte que todos os seus interesses, há de ter uma saída completamente diversa, isto é, investirá claramente contra aquilo de que ele mesmo falava: contra as leis da razão, contra a sua própria vantagem, bem, numa palavra, contra tudo...
  • Pois o homem é estúpido, de uma estupidez fenomenal. Ou, melhor, embora ele não seja de todo néscio, não há nada no mundo que seja tão ingrato.
  • Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (...) enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo.
  • Pensai no seguinte: se, em lugar do palácio, existir um galinheiro, e se começar a chover, talvez eu trepe no galinheiro, a fim de não me molhar; mas, assim mesmo, não tomarei o galinheiro por um palácio, por gratidão, pelo fato de me ter protegido da chuva. Estais rindo, dizeis até que, neste caso, galinheiro e palácio são a mesma coisa. Sim, respondo, se fosse preciso viver unicamente para não me molhar.
  • Vinha-me à mente: por que ninguém, além de mim, sente ser olhado com aversão?
  • Torturava-me então mais uma circunstância: o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. “Eu sou sozinho, e eles são todos”, dizia de mim para mim, e ficava pensativo. Isso mostra que eu ainda era completamente garoto.
  • Mas eu tinha uma solução apaziguadora: era refugiar-me no que fosse “belo e sublime”, em devaneios, é claro.
oct 19 2022 ∞
may 8 2023 +