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O que realmente faz diferença
Muita gente pergunta o que faz diferença para formar um espírito crítico , agudo e com base. O que faz uma alma livre e sábia? Eu penso em algumas questões muito específicas:
01) Ler os clássicos. A maioria fala do que vê rapidamente; emite opinião a partir de um site; bate boca sobre um conceito pela internet, sem ter percorrido o caminho que formou o conceito. Ler os clássicos que formaram nosso pensamento é indispensável! O que são clássicos? Obras que, para o bem e para o mal, estruturaram ideias e formas de análise por séculos ou milênios. Foram testados pelo tempo. Foram idolatrados e combatidos. Formaram muitas gerações e o que se fez depois foi feito sobre este debate. Sem eles a arte, o pensamento, as atitudes e até os sistemas de ideias se esvaziam.
Exemplo inicial: Bíblia. Livro formador do pensamento ocidental. Sem ela quase nada faz muito sentido, da Capela Sistina ao Caim de Saramago. Não é religioso? Aprenda que o seu gosto é irrelevante na formação do mundo ocidental. Tem ojeriza a textos religiosos? Vc será pó e a Bíblia continuará a ter muita influência no mundo mil anos depois que seu sobrenome tiver virado fumaça nas brumas do tempo. Formação não é preferir coca zero com gelo ou só limão . Formação é processo de diálogo denso e árduo com as bases do mundo.
Sugestão: Comece pelo Gênesis. escolha um tradução direto do hebraico e do grego (línguas básicas da Bíblia). qual edição? Bíblia de Jerusalém ou uma edição revista de Ferreira de Almeida. Depois leia o Êxodo. Evite os 3 seguintes por enquanto. É um bom começo. Depois falo mais. PS: se não tem em casa, eis um site com a versão Ferreira de Almeida
Clássicos II
Terminou Gênesis e Êxodo? Continue com livros históricos e leia O Livro dos Reis. Depois escolha salmos, literatura poética. O 23 é o mais conhecido. Com a literatura poética e sapiencial vc está apto a um dos mais belos e antigos textos: Jó. Por fim, leia um profeta: Isaías ou Daniel, ou ambos. Com estas poucas leituras, sem ser um especialista, vc terá acesso a muito da tradição do Antigo Testamento. Hora de encarar um evangelho (Lucas, talvez, pela beleza do texto ou Marcos pela antiguidade). Leia Atos dos Apóstolos sobre as origens da Igreja e cartas de Paulo (Efésios /Coríntios). Evite o Apocalipse por enquanto. Gostou? entendeu? Hora de encarar o resto que ficou para trás. Nada disto tem relação com religião, mas com clássicos e formação. Viu o básico? Hora de passar para a tradição grega e pular de Jerusalém para Atenas...
Clássicos III
Simplesmente mandar ler a Ilíada, para alunos em geral, mata a vontade de crescer nos clássicos. Livro fascinante, mas que demanda muitos conhecimentos de mitologia. Por isto, sem querer cansar as pessoas eu recomendaria começar por coisas importantes, mas mais acessíveis:
- Antígona, de Sófocles. O choque entre a consciência individual e o dever. Texto curto (vc lerá em menos de uma hora) e fascinante.
- Prometeu acorrentado, de Ésquilo. Peça mais antiga do que a anterior , com menos personagens. Uma consciência livre e rebelde (Prometeu) dialogando com o poder dos deuses e com outra vítima do orgulho de Zeus e Hera: Io. Agora você pode comparar esta peça mais antiga com a anterior. Veja como mudou o papel do Coro entre uma peça e outra.
- Medeia, de Eurípedes. Peça linda sobre vingança e amor se transformando em ódio. Inspirou a Gota d'água de Chico Buarque e Paulo Pontes. O que pode uma mulher de mais de 50 anos abandonada pelo marido que segue uma mais jovem e mais rica?
Amou teatro grego? Estas 3 peças são curtas. Os gregos assistiam muitas ao longo de um dia. que tal encerrar esta introdução com Édipo Rei? Aristóteles fez um elogio profundo a esta peça. É uma peça política e sobre destino. Nosso tabus a elegeram como uma peça sobre desejo pela mãe, algo pouco relevante na peça.
Clássicos IV
Clássicos IV
O mundo grego se abriu para você? É um desafio de anos e fascinante. Ler a cultura clássica transforma nossa visão de mundo. Parece incoerência, mas peço que as pessoas leiam primeiro a Odisseia e depois a Ilíada. A Odisseia trata de Ulisses (Odisseus), o herói astuto, da busca que seu filho faz pelo paradeiro do pai, da perfeição na ilha de Calíope, da inteligência contra a força com Polifemo, da construção da memória da Guerra de Tróia e do jogo pessoal e político no retorno a Ítaca. Aqui um conselho importante: ler poesia épica é entrar no caminho do desafio intelectual. Ler com régua, concentrado, sem celular, com um bom dicionário de mitologia ao lado. Leitura lenta, degustada linha a linha, não o rema-rema de um best-seller. A obra clássica lança este desafio quando a abrimos: será que você consegue entender o que lhe trago? O livro comum quer seduzi-lo; a poesia épica diz que o caminho é seu e a escolha é sua. Qual edição ler? Isto daria 857 posts. Comprei e gostei da edição recente de Christian Werner (Cosac Naify), fluida e bela. Uso em sala duas edições anteriores: a tradução do prof. Donald Schüler e a clássica de Odorico Mendes. Há muita doutras. Ulisses levou 20 anos para fazer a guerra que não queria e retornar para casa. A leitura da Odisseia consumirá menos tempo. Como o rei de Ítaca, amarre-se no mastro do navio e ouça tudo. Desafio final: o cap 01 do livro MImesis de Auerbach. Ele compara o estilo bíblico com o grego de narrar. Li ao entrar na pós e lembro do capítulo como uma luz perene na minha vida.
Clássico V
O mundo greco-romano garante uma vida inteira de leituras e pesquisas. Poderia fazer mil sugestões : todas seriam parciais e limitadas. Então já digo de antemão: todos que disserem "falta isto" ou "aquilo é também fundamental" estão corretos desde já. Para o mundo da Filosofia grega, vou recomendar três pitadas maravilhosas. Um degrau do pensamento ocidental é o discurso de Sócrates inventado ou adaptado por Platão : a Apologia de Sócrates. Curto e fácil de ser lido, encontra-se disponível na internet. Lá vemos debatidos temas como a sabedoria, a verdade, a hipocrisia social, e belas metáforas sobre a justiça. Outro degrau é o texto da "Alegoria da Caverna", que está no livro da República de Platão. Talvez seja o texto mais influente do Ocidente e do idealismo platônico. Há milhares de traduções e de ilustrações. Por fim, do meio da imensa obra aristotélica, eu indicaria a Ética a Nicômaco, uma aplicação sintética e prática do pensamento do Estagirita. Sempre foi um texto que me marcou: por que fazer o bem mesmo que ninguém esteja olhando e não exista punição por deixar de fazê-lo? Aristóteles responde e mostra o motivo de bem levar a uma vida feliz. É a Ética que o Rafael coloca nas mãos de Aristóteles. Platão segura o Timeu, um dos seus famosos diálogos. Rafael pintou quase todos os sábios que o Ocidente admirava neste famoso "A escola de Atenas". O Brasil tinha 11 anos de idade quando o afresco terminou. Três pitadas de sal filosófico. Sem elas , o pensamento fica insosso... Somos anões no ombro de gigantes, frase tão antiga e verdadeira... Talvez ao fim consigamos a ideia socrática: lendo muito e meditando muito, concluiremos que nada podemos saber e nada sabemos. Quando tivermos noção da nossa ignorância , teremos dado o primeiro passo da sabedoria.
Clássicos VI
O legado da filosofia clássica greco-romana nunca pode ser esgotado. Mas quero falar do elo entre este legado e o mundo cristão que se inicia: Agostinho. Ele é o último romano ou o primeiro medieval. Sua conversão mudou o pensamento ocidental. Para alguns, suas "Confissões" são a primeira autobiografia, algo que deveria esperar até Rousseau para se repetir. Mas é um texto bonito, com frases impactante e reflexões sobre tempo e história. Sim, A Cidade de Deus é mais elaborada teologicamente. Mas, o prazer de ler as Confissões é único. O êxtase místico em Óstia , com sua mãe Mônica é uma chave para entender como a alegoria da caverna platônica pode ser cristianizada. A noção agostiniana de graça marca a própria justiça ocidental. Nas férias, reli a edição da Ed. Vozes. Texto clássico: sempre rico e sempre pronto a tentar melhorar meu mundo. Leu e gostou? Tente um passo além: o livro de Peter Brown: Santo Agostinho, uma biografia. No ano passado, na igreja de Santo Agostinho, em San Gimignano (Toscana) , eu mostrava a alguns alunos os afrescos de Benozzo Gozzoli com a vida de Santo Agostinho. Um perguntou: como você sabe estas coisas? Respondi: eu li as Confissões. Clássicos significam isto: o mundo passa a fazer sentido e os links s multiplicam. Não ler é enfrentar o vazio, a falta de elos e a escuridão.
Clássicos VII
Clássicos VII : Divina Comédia Eu era criança. Havia, na biblioteca da minha casa , uma enciclopédia: o Novo Tesouro da Juventude. Lá havia resumos de grandes obras e eu li síntese da Divina Comédia. Adorei e fui logo ver a obra original. Desisti depois dos primeiros versos. Era cedo demais. Obra vasta e cabeça curta se desencontram logo. Voltei a Dante já adolescente e terminei o Inferno rapidamente, mas morri no Purgatório. Eu fiquei mais impressionado pelas ilustrações de Gustav Doré do que pelo texto em si. Minha ordenada ainda não se cruzava com a abscissa de Dante. Mais jovem eu era ainda mais limitado e dizia uma asneira que me irrita hoje nos outros: classificava de chato tudo o que eu não conseguia compreender. Raposas jovens e limitadas desprezam como verdes as uvas que não alcançam. Finalmente, fazendo História medieval com o prof. Baldissera, encarei Dante com energia. Foi quando se fez a luz. Li inteira , imantado, assombrado e feliz porque um ser humano tinha aquela capacidade. Passei a colecionar versões. Até aquilo que não tinha sentido algum, como o canto dos demônios (VII), parecia grandiloquente: Papé Satàn, papé Satàn aleppe. Estes versos não possuem tradução ou interpretação clara, mas até obscuro Dante é musical. Há alguns anos, com um grupo de estudos, li a Divina Comédia verso a verso com eles, e foi lindo ver como o florentino ia iluminando cada um com seu drama cósmico. T. S. Elliot disse que “Dante and Shakespeare divide the world between them. There is no third.” Concordo em parte. Elliot elide um terceiro, mas falarei depois dele. Versões em português: há muitas. Gosto da tradução de Ítalo Mauro (ed. 34) Por motivos distintos adoro João Trentino Ziller (Unicamp/Ateliê) com o denso prefácio do meu amigo prof. João Hansen.