lição IX: a função do véu

  • "o falo em questão - nós o reconhecemos desde logo - é um objeto simbólico. Por um lado, estabelece-se através desse objeto um ciclo estrutural de ameaças imaginárias que limita a direção e o emprego do falo real. Aí está o sentido do complexo de castração, e é nisso que o homem fica preso." (p. 155)
    • se são ameaças imaginárias (isto é, a ameaça vinda das figuras parentais empíricas a que se refere freud de eles que vão cortar o piru se a criança continuar se masturbando) que constituem o penis como falo, então o penis não é irrevogavelmente o falo, mas apenas em sociedades cujo processo de sexuação envolva a falicização do penis.
  • "O falo está sempre para além dde toda relação entre o homem e a mulher. Ele pode ser, ocasionalmente, objeto de uma nostalgia imaginária por parte da mulher, na medida em que ela tem apenas um falo muito pequenino. Mas este falo que ela pode sentir como insuficiente não é o único que entra em função para ela, uma vez que, na medida em que ela está presa na relação intersubjetiva, existe para o homem, mais além dela, este falo que ela não tem, isto é, o falo simbólico, que existe ali como ausência. __Isso é independente, por completo, da inferioridade que ela posso sentir no plano imaginário, pela participação real que ela tem com o falo.__" (p. 155)
  • "O véu, a cortina diante de alguma coisa, ainda é o que melhor permite ilustrar a situação fundamental do amor. Pode-se mesmo dizer que com a presença da cortina, aquilo que está mais além, como falta, tende a se realizar como imagem. Sobre o véu pinta-se a ausência." (p. 157)
  • "Lembro-me de haver outrora empregado a comparação do filme que subitamente se congela, justo antes do momento em que aquilo que é buscado na mão, isto, é, esse falo que ela tem e que ela não tem, deve ser visto como presença-ausência e ausência-presença. A rememoração da história se detém e se suspende num momento imediatamente anterior." (p. 160)
  • "A lembrança encobridora está ligada à história por toda uma cadeia, ela é uma parada nessa cadeia e é nisso que é metonímica, pois a história, por sua natureza, continua. Detendo-se ali, a cadeia indica sua sequência a partir daí velada, sua sequência ausente, a saber, o recalque em questão, como diz Freud claramente."
  • "Falamos em recalque apenas na medida em que há cadeia simbólica. Se podemos designar como o ponto de um recalque um fenômeno que pode passar por imaginário, pois o fetiche é de certa maneira imagem, e imagem projetada, é que esta imagem não passa do ponto-limite entre a história, na medida em que esta continua, e o momento a partir do qual ela se interrompe. Ela é o signo, a referência do ponto de recalque." (p. 160)
    • aqui lacan parece identificar a operação do fetiche com a operação da lembrança encobridora, como se se tratasse de um recalque. o que diferencia os dois? talvez seja o congelamento do signo selecionado como imagem e não seu investimento como significante; o que, no entanto, precisaria ser descrito em termos da relação do sujeito ao Outro. de qualquer forma, a relação de ambos com aquilo que se trata de negar é a metonímia.
  • "Em suma, encontramos nas relações com o objeto amoroso que organizam esse ciclo no fetichista uma alternância de identificações. Identificação com a mulher, confrontada com o pênis destruidor, com o falo imaginário das experiências primordiais do período oro-anal, centradas na agressividade da teoria sádica do coito, e, com efeito, muitas experiências que são reveladas pela análise mostram uma observação da cena primitiva percebida como cruel, agressiva, violenta, até mesmo assassina. Inversamente, identificação do sujeito com o falo imaginário, que o faz ser para a mulher um puro objeto, que ela pode devorar e, no limite, destruir. A essa oscilação de dois pólos da relação imaginária primitiva a criança se confronta de uma maneira que se pode dizer bruta, antes da instauração da relação na sua legalidade edipiana pela introdução do pai como sujeito, centro de ordem e de posse legítima." (p. 163)
    • como compreender essas duas identificações que se alternam? se aquilo de que se trata é o objeto oral e a incorporação, a agressividade terna do canibal, a questão é uma alternância entre comer e ser comido, a oposição bruta entre atividade e passividade, articulada pela teoria sádica do coito. a identificação com o falo imaginário faz todo sentido: é a posição do eu ideal, do se fazer objeto perante o olhar do outro, e aqui aparece a questão do fetiche como imagem. mas o que significaria identificar-se com a mãe nos termos do estádio do espelho? é preciso estudar a questão da oralidade.

isso deve ter algo a ver com o ideal de eu, o traço que funda o sujeito a partir da "redução das diferenças qualitativas" do "signo de assentimento" que vem do outro; talvez o fetichista encubra essa diferença absoluta com uma identificação imaginária

  • "Em consequência de uma extravagante prescrição média, uma criança fora impedida de andar até a idade de dois anos, laços efetivos a prendiam à cama. Isso não poderia deixar de ter alguma consequência. O fato de que ela vivesse assim, estritamente vigiada no quarto de seus pais, colocava-a na posição exemplar de estar inteiramente entregue a uma relação puramente visual, sem qualquer esboço de reação muscular que partisse dela. Sua relação com os pais era assumida no estilo da raiva e da cólera que vocês bem podem supor. Se casos tão exemplares são raros, alguns autores insistiram no fato de que a fobia de certas mães que mantêm seu filho à distância, mais ou menos como se tratasse de uma fonte de infecção, não deixa de ter, certamente, algo a ver com a prevalência dada à relação visual na constituição da primitiva relação com o objeto materno."

lição X: a identificação ao falo

  • "Bem no final do que lhes disse da última vez a propósito do fetichismo, mostrei a vocês o surgimento de uma posição de certa maneira complementar. Esta aparece também nas fases da estrutura fetichista, até mesmo nas tentativas do fetichista para se unir a este objeto de que está separado por essa alguma coisa da qual, naturalmente, ele próprio não compreende a função nem o mecanismo. Esta posição, que se pode chamar de simétrica, o respondente, o correspondente, o pólo oposto com referência ao fetichismo, é a função do __travestismo. No travestismo, o sujeito se identifica com aquele objeto a que falta alguma coisa. Os autores viram isso com clareza na análise, e o dizem na língua deles: o travesti se identifica com a mãe fálica, na medida em que esta, por outro lado, vela a falta de falo." (p. 168)
    • a oscilação de identificações, portanto, diz respeito à função do fetichista e à do "travestismo". como pensar a distinção entre falo simbólico e falo imaginário aqui? parece que, enquanto em ambos os casos se trata de uma identificação ao falo imaginário, no fetichista, tal identificação é mediada pelo eu ideal como imagem do falo, enquanto no "travestismo" é a mãe que se coloca na posição de eu ideal.
  • "Não é verdade que, sempre e em toda ocasião, o sujeito simplesmente se mostre, na medida em que mostrar-se é o pólo correlativo à atividade de ver. Não se trata simplesmente da implicação do sujeito num par de captura visual. Existe na escopofilia uma dimensão suplementar da implicação, expressa no uso da língua pela presença do reflexivo, esta forma do verbo que existe em outras línguas e que se chama a voz média. Seria, aqui, dar-se a ver. Combinando uma a outra essas duas dimensões, podemos dizer que em todo um tipo de atividades confundidas sob o rótulo da relação voyeurismo-exibicionismo, o que o sujeito dá a ver, mostrando-se, é outra coisa diferente daquilo que ele mostra. Portanto é errado mergulhar isso tudo naquilo a que se chama maciçamente de relação escopofílica." (p. 169)
    • parece que lacan quer dizer que o "dar-se a ver" envolve uma identificação ao eu ideal como mediador do mostrar, isto é, que já não se trata mais da pulsão escópica pura e simples, mas da sua conversão em libido do eu.
  • "Como já disse a vocês, a estrutura da onipotência não está, contrariamente ao que se acredita, no sujeito, mas na mãe, isto é, no Outro primitivo. É o Outro quem é todo-poderoso. Mas, por trás desse todo-poderoso, existe a falta última a que está suspensa sua potência. Desde que o sujeito percebe, no objeto de que espera a onipotência, esta falta que o faz, a ele mesmo, impotente, a última instância da onipotência é referida para além, a saber, ali onde alguma coisa não existe ao máximo. Isso é o que, no objeto, não passa de simbolismo da falta, fragilidade, pequenez." (p. 171)
    • a onipotência está no Outro primitivo; isso faz sentido do ponto de vista do ideal de eu, que sanciona ou não o desejável. mas significa que a onipotência também não está também no eu ideal? qual é a relação entre o eu ideal e a onipotência?
  • "Proponho-lhes o seguinte: a metáfora subjacente à introjeção é uma metáfora oral." (p. 176)
  • "Sua conceitualização {da pulsão oral } é impossível, é impossível construir o que quer que seja de ordenado, não somente em nossos pensamentos, mas na prática e na clínica, se nos atemos à vaga noção que está sempre, nesses casos, a nosso dispor — o sujeito regride, dizem, porque naturalmente ele está ali para isso. Assim, no próprio momento em que o sujeito está progredindo na análise, isto é, tentando tomar a perspectiva de seu fetiche, ele regride. Vocês sempre podem dizer isso, ninguém irá contradizê-los. Eu digo, ao contrário, que cada vez que a pulsão aparece, na análise ou em qualquer outro lugar, ela deve ser concebida, quanto à sua função econômica, com referência ao desenvolvimento de uma relação simbolicamente definida." (p. 177)
    • lacan rejeita a noção de regressão com base no desenvolvimento psicossexual
  • "É na medida em que a mãe falta à criança que a chama que esta se agarra ao seu seio, e que este seio se torna mais significativo que tudo. Enquanto o tem na boca e se satisfaz com ele, por um lado a criança não pode ser separada da mãe, por outro lado isso a deixa alimentada, repousada e satisfeita. A satisfação da necessidade é, aqui, a compensação da frustração do amor, e começa a se tornar, ao mesmo tempo, o seu álibi." (p. 178)
    • objeto parcial e falta
  • "O valor prevalente assumido pelo objeto — no caso, o seio ou a chupeta —está baseado no seguinte: um objeto real assume sua função como parte do objeto de amor, assume sua significação como simbólico, e a pulsão se dirige ao objeto real como parte do objeto simbólico, este se torna, como objeto real, uma parte do objeto simbólico. É a partir daí que se abre toda compreensão possível da absorção oral e de seu mecanismo que se auto-intitula regressivo, que pode intervir em toda relação amorosa. A partir do momento em que um objeto real, que satisfaz uma necessidade real, pode tornar-se elemento do objeto simbólico, qualquer outro objeto capaz de satisfazer uma necessidade real pode vir colocar-se em seu lugar e, principalmente, este objeto já simbolizado, mas também perfeitamente materializado, que é a palavra." (p. 178)
    • pulsão entre simbólico e real
  • "Na medida em que a regressão oral ao objeto primitivo de devoração vem compensar a frustração de amor, essa reação de incorporação dá seu modelo, seu molde, seu Vorbild, a este tipo de incorporação que é a incorporação de certas palavras dentre outras, que está na origem da formação precoce daquilo a que se chama o supereu. O que o sujeito incorpora sob o nome de supereu é algo de análogo ao objeto de necessidade, não na medida em que ele mesmo seja o dom, mas na medida em que ele substitui a falta do dom, o que não é absolutamente o mesmo." (p. 178)
    • aqui o supereu substitui a falta do dom; no seminário 8, o ideal de eu é o signo de assentimento; no seminário 9, ele é o einziger Zug, o traço unário
  • "Temos a estruturação simbólica e a introjeção possível, que é, como tal, a forma mais caracterizada da identificação primitiva. É num segundo tempo que se produz a Verliebtheit { enamoramento }. Esta não é concebível, não é articulada em parte alguma senão no registro da relação narcísica, em outras palavras, da relação especular tal como aquele que lhes fala definiu e articulou."
  • "É com relação a esta imagem {o i(a) } que se apresenta como total, não apenas preenchedora, mas fonte de júbilo em razão da relação específica do homem com sua própria imagem, que este realiza que algo pode lhe faltar. É na medida em que o imaginário entra em jogo que, sobre os fundamentos das duas primeiras relações simbólicas entre o objeto e a mãe da criança, pode aparecer que, tanto à mãe quanto à ela, algo pode faltar imaginariamente." (p. 179)
  • "nenhuma satisfação por um objeto real qualquer que venha aí como substituto jamais consegue preencher a falta na mãe. Ao lado da relação com a criança, permanece nela, como um ponto de fixação de sua inserção imaginária, a falta do falo. É somente depois do segundo tempo da identificação imaginária especular à imagem do corpo, que está na origem do seu eu e que dá a matriz deste, que o sujeito pode realizar o que falta à mãe. A experiência especular do outro como formando uma totalidade é uma condição prévia. É com referência a esta imagem que o sujeito realiza que, a ele, alguma coisa pode faltar. O sujeito leva assim para além do objeto do amor esta falta a que pode ser conduzido a substituir, a se propor ele mesmo como o objeto que a preenche."
    • aqui a frustração do amor, compensada pelo objeto real, aparece como o "ponto de fixação da inserção imaginária" da mãe, a partir do qual se dará a constituição da sua imagem e, se bem entendo, da formalização dessa frustração por meio da falta do falo.
  • "Simplesmente, se observarmos os esquemas, percebemos que ele tomou o cuidado de ligar esses três objetos a um objeto exterior, que está por trás de todos. Não encontram aí uma semelhança espantosa com aquilo que lhes estou explicando? A propósito do Ich-Ideal, não se trata simplesmente de um objeto, mas de algo que está para além do objeto, e que vem se refletir, como diz Freud, não pura e simplesmente no eu, que sem dúvida sente alguma coisa e pode se empobrecer, mas em algo que está nas próprias bases do eu, em suas primeiras formas, em suas primeiras exigências, e, para dizer tudo, sobre o primeiro véu, e se projetando aí sob a forma do ideal do eu." (p. 181)
    • ideal do eu = primeiro véu´

lição XI: o falo e a mãe insaciável

  • "Da frustração, vamos afirmar inicialmente que ela não é a recusa de um objeto de satisfação no sentido puro e simples. Satisfação quer dizer satisfação de uma necessidade" (p. 183)
  • "Freud também nunca fala da frustração. Ele fala da Versagung, que se inscreve muito mais adequadamente na noção de denúncia, no sentido em que se diz denunciar um tratado, onde se fala da retirada de um engajamento." (p. 183)
  • "Digamos que, originariamente, a frustração - não uma frustração qualquer, mas aquela que e utilizavel em nossa dialetica - so é pensavel como a recusa do dom, na medida em que o dom é símbolo do amor." (p. 184)
  • "Encontramos sempre aqui uma ambiguidade que nasce do fato de termos uma ciência do sujeito, não uma ciência do indivíduo. Ora, sucumbimos à necessidade de pôr no começo o sujeito, esquecendo que o sujeito como sujeito não é identificável ao indivíduo. Mesmo que o sujeito se destaque, como indivíduo, da ordem que lhe concerce como sujeito, esta ordem nem por isso deixa de existir." (p. 185)
  • "O dom implica todo o ciclo da troca, onde o sujeito se introduz tao primitivamente quanto possam supor. So existe dom porque existe uma imensa circulaçao de dons que recobre todo o conjunto intersubjetivo. O dom surge de um mais-alem da relação objetal, ja que ele supõe atras de si toda a ordem da troca em que a criança ingressou, e so pode surgir deste mais-alem com o carater que o constitui como propriamente simbolico. Nada e dom se nao for constituído pelo ato que, previamente, o anulou ou revogou. É sobre um fundo de revogaçao que o dom surge, e sobre este fundo, e como signo de amor, inicialmente anulado para ressurgir em seguida como pura presença, que 0 dom se da ou nao ao apelo." (p. 185)
  • "Vocês vão me objetar que eu ensinei que, no momento em que o sujeito captura a totalidade de seu corpo próprio em sua reflexão especular, onde ele se realiza de certa maneira neste outro total e se apresenta a si mesmo, o que ele experimenta e antes urn sentimento de triunfo. Aí está uma reconstrução, que não deixa de ser confirmada pela experiencia, e o caráter jubilatório deste encontro não é duvidoso. Mas convém, aqui, não confundir duas coisas. Existe, por um lado, a experiência do domínio, que vai dar a relação da criança com seu próprio eu um elemento de splitting essencial, de distinção de si mesmo, que irá permanecer até o fim. Existe, por outro lado, o encontro com a realidade do mestre. Na medida em que a forma do domínio é dada ao sujeito sob a forma de uma totalidade a ele mesmo alienada, mas estreitamente ligada a ele e na sua dependência, isso é o jubilo, mas as coisas correm de outra maneira quando, uma vez que esta forma the foi dada, ele reencontra a realidade do mestre. Assim, o momento de seu triunfo é também o mediador de sua derrota. Quando se encontra em presença desta totalidade sob a forma do corpo materno, ele deve constatar que ela não lhe obedece. Quando a estrutura especular reflexa do estadio do espelho entra em jogo,·a onipotência materna só e refletida, então, em posição claramente depressiva, e ai surge o sentimento de impotência da criança. É ai que pode se inserir aquilo a que eu aludia há pouco, quando lhes falei da anorexia mental. Poderíamos nos apressar um pouco e dizer que o único poder detido pelo sujeito contra a onipotência é dizer "não" no nível da ação, e introduzir aqui a dimensão do negativismo, que não deixa de ter relação com o momento que viso. Todavia, chama a atenção para o fato que a experiência nos demonstra, e não sem razão, que não é no nível da ação e sob a forma de negativismo que se elabora a resistência à onipotência na relação de dependência, e sim no nível do objeto que nos apareceu sob o signo do nada. É no nível do objeto anulado como simbólico que a criança põe em xeque a sua dependência, e precisamente alimentando-se de nada. É aí que ela inverte sua relação de dependência, fazendo-se, por esse meio, o mestre da onipotência ávida de fazê-la viver, ela que depende da onipotência. A partir dai, é ela quem depende por seu desejo, é ela quem está à sua mercê, à mercê das manifestações de seu capricho, a mercê da onipotência de si mesma." (p. 190)
    • isto é, não haveria na separação do objeto oral materno uma negação da atividade, mas uma negação do objeto, uma substituição simbólica do objeto. mas que experiência demonstra isso?
  • "O termo 'regressão' é aplicável ao que se passa quando o objeto real, e ao mesmo tempo a atividade feita para captá-lo, vem substituir a exigência simbólica. O fato de que a criança anule sua decepção em sua saciedade e seu assujeitamento ao contato do seio ou de um outro objeto qualquer, isso é o que lhe permitirá ingressar na necessidade do mecanismo, que faz com que a uma frustração simbólica possa sempre suceder a regressão. Aquela abre a porta para esta." (p. 192-3)
  • "Ainda aí, defendam-se das exigências vãs de uma gênese natural. Se quisessem deduzir de uma constituição qualquer dos órgãos genitais o fato de que o falo desempenha um papel prevalente em todo o simbolismo genital jamais o conseguiriam. [...] A questão é, em primeiro lugar e antes de mais nada, uma questão de fato. É um fato. Se não descobríssemos nos fenômenos a prevalência, a preeminência do falo em toda a dialética imaginária que preside às aventuras, aos avatares e também aos fracassos e ao esvaecimento do desenvolvimento genital, com efeito, não haveria problema." (p. 193-4)
  • "Deixemos por um instante o terreno da análise para retomar a questão que expus ao sr. Levi-Strauss, o autor de As estruturas elementares do parentesco. O que disse a ele? O senhor nos da a dialética da troca das mulheres através das linhagens. Por uma espécie de postulado, creio, o senhor formula que as mulheres são trocadas entre gerações. Tomei uma mulher de uma outra linhagem, devo à geração seguinte ou a uma outra linhagem uma outra mulher. Se isso acontece por casamentos preferenciais com primos cruzados, as coisas circularão muito regularmente em um círculo que não teré razão alguma para se fechar ou se quebrar, mas se é com primos paralelos podem acontecer coisas bastante aborrecidas, pois a troca tende a convergir depois de algum tempo, e provocar quebras e fragmentos. Formulo, pois, a questão: E se o senhor fizesse o círculo das trocas invertendo as coisas, e dizendo que são as linhagens femininas que produzem os homens e que os trocam entre si? Pois, enfim, esta falta de que falamos na mulher, já sabemos que não se trata de uma falta real. O falo, todos sabem que elas podem te-lo, elas o tem, o falo, e além disso os produzem, elas fazem meninos, falóforos. Por conseguinte, pode-se descrever a troca através das gerações na ordem inversa. Pode-se imaginar um matriarcado cuja lei seria: Dei um menino, quero receber o homem. A resposta de Levi-Strauss é a seguinte. Pode-se, sem duvida, do ponto de vista da formalização, descrever as coisas exatamente da mesma maneira tomando urn eixo de referência, um sistema de coordenadas simétrico fundado nas mulheres, mas então um bocado de coisas seria inexplicável, e em particular a seguinte. Em todos os casos, mesmo nas sociedades matriarcais, o poder político é androcêntrico. Ele é representado por homens e por linhagens masculinas. As anomalias muito bizarras nas trocas, as modificações, exceções, paradoxos, que aparecem nas leis da troca no nível das estruturas elementares do parentesco são explicáveis somente com relação a uma referência que está fora do jogo do parentesco e que se liga ao contexto politico, isto é, a ordem do poder, e muito precisamente a ordem do significante, onde cetro e falo se confundem. É por razões inscritas na ordem simbólica, transcendendo o desenvolvimento individual, que o fato de ter ou não o falo imaginário e simbolizado assume a importância econômica que tem no nível do Édipo. Isso é o que motiva ao mesmo tempo a importância do complexo de castração e a preeminência das famosas fantasias da mãe fálica, o que cria o problema que vocês conhecem, desde que surgiu no horizonte analítico." (p. 194-5)
    • isto é, a preeminência do pênis como imagem privilegiada para a função simbólica do falo não é uma necessidade lógica, ela precisa ser admitida para que se explique a prevalência dessa imagem na explicação de fatos empíricos em sociedades realmente existentes.
  • sobre a perversão: "A etapa crucial se situa logo antes do Édipo, entre a relação primeira de que eu parti hoje e que fundamentei para vocês, a da frustração primitiva, e o Édipo. Esta é a etapa em que a criança se engaja na dialética intersubjetiva do engodo! Para satisfazer o que não pode ser satisfeito, a saber, esse desejo da mãe que, em seu fundamento, é insaciável, a criança, por qualquer caminho que siga, engaja-se na via de se fazer a si mesma de objeto enganador. Este desejo que não pode ser saciado, trata-se de enganá-lo. Precisamente na medida em que mostra a sua mãe aquilo que não é, constrói-se todo o percurso em torno do qual o eu assume sua estabilidade." (p. 198)
apr 3 2020 ∞
apr 13 2020 +