de fato, a maneira como kurz concebe o trabalho abstrato - como mero dispêndio de força humana para a produção de um excedente que não serve às necessidades imediatas dos trabalhadores - está correta, e a concepção lukacsiana do trabalho como uma positividade ontológica de criação, que lembra o conatus spinozista, está plagada de uma veneração sub-reptícia do progresso burguês, da subsunção violenta das necessidades e atividades particulares ao imperativo do progresso do todo, sem integrá-las nesse todo. de fato, o valor é o fundamento social do princípio da identidade e da eliminação do não-idêntico.
ainda assim, como marx argumenta no cap. 49 do livro III, mesmo numa sociedade pós-capitalista, a contabilidade do valor permanece necessária devido à inevitabilidade econômica, para a reprodução social, da produção de um excedente que ao menos reponha aos meios de produção existentes, de modo que é uma ilusão a crença de que a abolição do socialismo tornaria desnecessária a produção do excedente e a administração da alocação de recursos (o cliché pseudo-anarquista do mundo como associação de particulares plenamente autônomos, isto é, uma enorme ecovila), ainda que esse excedente não esteja voltado para a acumulação. em termos sociológicos, isso significa que o valor é uma expressão econômica da permanência da necessidade da produção social, do ocultamento da não-identidade entre o universal e o particular e da impossibilidade de atomização plena deste. ainda que o desenvolvimento das forças produtivas faça com que a quantidade de trabalho necessário tenda a zero, não é possível que ela de fato chegue a zero (a menos que se adira à fantasia liberal da 'singularidade', cuja invenção permitiria que os meios de produção produzissem a si mesmos e aos seus produtos, essencialmente um fim da história para o desenvolvimento das forças produtivas em que os sujeitos alienariam plenamente a sua atividade nos objetos e se dissolveriam neles como coisa).
no entanto, posteriormente à superação completa das categorias sociais do capitalismo, quando a produção já não estiver mais orientada para a acumulação, mas estivesse autonomamente orientada, esse avanço quantitativo da produtividade se converteria em mudança qualitativa. não cabe antecipar filosoficamente as categorias com as quais essa sociedade se estruturaria, mas é possível afirmar sobre elas que não seriam o mero cancelamento da forma-valor, mas sua suspensão (aufhebung). a validez da suposição de um modo de organização social que elimine qualquer antagonismo e encarne a reconciliação como conquista perene permanece incerta, mas disso não depende a imaginação de uma sociedade que supere a forma que o antagonismo social assume no interior do capitalismo.
outra questão é a estratégia política concreta a se adotar tendo essa meta. é simplesmente ingênuo acreditar na possibilidade de que estoure simultaneamente por todo o globo a revolução permanente. isso significa que uma revolução socialista necessariamente terá que lutar longamente no terreno da 'sociedade do trabalho' para sustentar o grau de acumulação necessário para competir com as potências imperialistas e derrotá-las. se a teoria leninista do 'elo mais fraco' estiver correta (e a história não tem deixado de comprová-la), as revoluções que prevalecerão se darão em economias dependentes, o que implicará na necessidade do 'desenvolvimento recuperador' e na intensificação da acumulação; e é inevitável que isso implique na manutenção (ou, no pior dos casos, no acréscimo) da pressão sobre as massas trabalhadoras para o dispêndio de trabalho abstrato. é imprescindível que a condução desse processo não transforme em virtude o que é necessidade e que a todo tempo seja lembrado que violência é violência. ainda assim, é essa a triste necessidade que terá de ser arrolada entre as 'dores do parto' da nova sociedade juntamente à violência política, e aquele que não a admite ou se ilude sobre a intensidade do contragolpe do capital ou está interessado na permanência do capitalismo.
aqui entra a contradição central da obra de kurz: ele paradoxalmente preserva a compreensão da crítica da economia política como crítica da "coisificação das pessoas e personificação das coisas", mas não vê a emancipação dessa situação como a humanização do mundo por uma auto-apreensão por um sujeito histórico humano da produção social. para ele, o sujeito não é nada mais que o véu ideológico que oculta a realidade econômica da mônada produtora-consumidora determinada pela forma-mercadoria. e sem sujeito que possa "retomar as rédeas" do sujeito automático, a história se torna um processo cego para cujo destino inexorável podemos apenas rezar que nos conceda alguma consolação. mas é nisso que mora a contradição de kurz e seu fundo de ressentimento: ao enunciar a crítica à forma mercadoria, ele já supõe implicitamente um sujeito para a negação determinada, ao qual ele envia sua mensagem. se ele precisa bloquear qualquer expectativa de que esse sujeito surja e se nomeie, não é porque este jamais pode estar à altura de empunhar a crítica, mas por puro ressentimento.