as sociedades tradicionais se caracterizam por um modelo de ação cuja causa eficiente se identifica com sua causa final, isto é, submetido a uma autoconservação mediada: a vida dedicada ao trabalho útil, cujo fim é a causar eficientemente a vida, tem como seu fim último seu trabalho útil específico, que não é visto como trabalho em geral mas como papel moral-natural que medeia sua própria reprodução; também naquelas em que se desenvolve uma classe ociosa, esta precisa ver-se como mandatária do divino e, portanto, em outro nível, a possibilidade de realização do princípio moral desta sociedade é posta como sua condição de existência, pois viver de outra forma implicaria na sua dissolução enquanto tal.

a introdução do capitalismo constitui tal dissolução, pois se caracteriza por sua dissociação entre causa eficiente e causa final: enquanto cada um ainda pode reservar princípios morais particulares que lhes apareçam como telos, a sociedade como totalidade separa disso sua causa eficiente, a reprodução da esfera econômica (que, por si mesma, não pode ter qualquer telos); aqui deve ficar claro: o valor não se valoriza como fim em si, pois a acumulação enquanto tal, por sua qualidade ser justamente a quantidade pura, totalmente abstraída de conteúdo, não pode por isso aparecer como fim. a economia autonomizada se apropria, então, de fins externos, que são conservados para o sujeito como a imagem cada vez mais débil e tosca de um telos (o valor de uso como condição da troca), de forma que o adiamento do sentido na sucessão infinita de meios se torna esquecimento e a vida se torna um motor sem telos. essa é a história da passagem da razão objetiva para a razão subjetiva que horkheimer elucida no eclipse da razão.

no entanto, a superação de uma situação tal não pode se dar por uma nova fusão entre causa eficiente e causa final: ainda que o valor de uso, como condição teleológica mínima para a manutenção da autonomia progressiva do econômico que, por sua vez, progride em vistas à sua abolição, desperte a consciência para a possibilidade do melhor, a atualização dessa potência não pode ser, como se fiava adorno, ela mesma o que move a ação não-capitalista. isso porque as coordenadas em que tal potência se inscreve (isto é, sua aparência na forma do valor de uso) não é senão o marco irrevogável da sociedade falsa, e não é possível saber de antemão em que medida se confunde a potência em sua especificidade necessariamente falsa e o brilho do melhor que ela usurpa e, com isso, preserva; somente se o pode saber na sua atualização, que não apenas pode resultar no pior como, em seu arco formal, reconfirma a relação de troca sobre a qual a acumulação do capital se erige. recairiamos, com isso, na armadilha do fetichismo tradicional de uma vida cuja condição de possibilidade é a garantia da sua realização moral, sem a qual ela morre. uma vida tal não apenas será facilmente derrotada pelo motor sem telos do capitalismo (o que, é claro, não seria razão suficiente para não defendê-la ainda assim) como, e isso é o determinante, é frágil por si mesma frente à contingência a que tudo, o capitalismo incluso, está sujeito.

será preciso, por isso, pensar uma sociedade, bem como um sujeito ético, que se move em direção ao bem ainda que ele não seja visível como possibilidade previamente inscrita no sujeito. imaginar uma ação tal é imaginar um sujeito que prescinda do 'usufruto', do 'consumo' do bem sem deixar de orientar-se por ele; pois ela descobre em si uma heteronomia cuja sede da lei não se dá a ver, mas se sente nas imagens. tal heteronomia se exprime num movimento em que as imagens pelas quais a vida subjetiva se organiza (e não há vida subjetiva que prescinda de imagens) não se orientam mais pela consagração da visibilidade absoluta de um princípio de interioridade, de uma identificação plena entre uma aparência que revele sem distorções uma essência positiva. pelo contrário, a imaginação de tal imanência absoluta se dissolve na contemplação da alteridade -- não de um objeto exterior a ser subjugado pela visibilidade com seu regime de delimitações, mas a exterioridade da própria visibilidade que traça suas fronteiras secretamente, aquilo que não se subsume ao conceito mas que provoca nele um empuxo desde fora. tomada como princípio orientador da subjetividade, essa alteridade, então, não aparece mais como o absolutamente cindido, amputado, radicalmente afastado e desrelacionado ao sujeito em regime de autoconservação mediada; mas também não aparece como imediatidade do mundo, interior autentico, reconexão com a origem, 'Ser'. esse regime de relação entre imagem e sentido pode ser rotulado de reconciliação apenas no sentido etimológico do retorno ao 'concilio', à proximidade do chamado (e não sua interiorização, unificação, dissolução-em-si ou silenciamento) -- o conceito mesmo de proximidade envolve a convivência que não envolve dissolução em uma unidade indiferenciada.

é preciso distiguir tal conceito de heteronomia de três outros regimes de lei: a anomia e a autonomia.

além disso, é mais adequada à relação ao objeto que adorno imaginou: ela guarda uma distância convivial com a verdade e se conecta a ela sem garantias de posse. no entanto, o preço a se pagar com isso é a desistência de pensar a utopia, a perfeição realizada. ainda que mantenha seu sentido, a ação deve deixar que ele se prolongue infinitamente, como um vetor que confia em lançar-se do ponto de partida sem possuir, de antemão, seu ponto de chegada. ela faz isso porque, enquanto sustenta seu prolongamento, o péssimo existente desaba por si próprio e se abre para outra existência. a questão que resta saber é, portanto, qual seria a causa eficiente de tal ação: esta só pode ser o próprio desabamento do pior. de posse do existente em desabamento, ela é movida por isso na direção do desabamento da posse. posta em movimento pelo desabamento do ruim, ela pode seguir imaginando o melhor sem dele depender.

feb 4 2019 ∞
mar 6 2019 +