a categoria do orgânico, o paradigma hegeliano da animalidade, é descrito da seguinte forma na observação da natureza:

"A necessidade está escondida no que acontece, e só no fim se manifesta; mas de tal maneira que o fim mostra justamente que essa necessidade era também o primeiro. O fim, porém, mostra essa prioridade de si mesmo, porque, através da alteração que o agir operou, nada resultou que já não fosse. Ou seja: se começamos do primeiro [vemos que] no fim ou no resultado de seu agir ele apenas retorna a si mesmo. Portanto, o primeiro se mostra exatamente como sendo algo tal que tem a si mesmo por seu fim; assim, como primeiro já retornou a si, ou é em si e para si mesmo. Logo, é a si mesmo que alcança através do movimento de seu agir; e seu sentimento-de-si é atingir-se só a si mesmo. Sendo assim, está sem dúvida presente a diferença entre o que ele é, e o que ele busca. // Mas é so a aparência de uma diferença; por isso é, em si mesmo, conceito." (FdE, §257)

o orgânico é a realização simples do sentimento-de-si: o animal se orienta teleologicamente para uma forma que, do seu ponto de vista, é um outro; mas como o que o animal produz em seu agir é o seu si mesmo — ou seja, como este é o resultado do seu agir —, deve-se considerar que tal forma do 'que ele busca', que é o 'objeto' de seu sentimento, tem seu ser-em-si no si mesmo do animal. com isso, hegel trata tal diferença como uma diferença aparente (o que, na língua da fenomenologia, é sinônimo da "diferença indiferente" do entendimento, e da "diferença formal" da individualidade para si real). no entanto, hegel não percebe que o caráter de alteridade que essa mera forma do 'que ele busca' assume do ponto de vista do animal é a condição para que ele a tome como essencial e a persiga, com isso, realizando o movimento de conservar-se — em outras palavras, tal instância puramente formal é a causa do instinto do animal. ainda que 'o que ele busca' não tenha um ser-em-si próprio (sendo em-si um ser-para-outro), dizer isso não é o mesmo que dizer que tal instância formal tem por conteúdo o animal, como se as expressões 'o que ele é' e 'o que ele busca' fossem duas referências para o mesmo referente, dois nomes para a mesma coisa. 'o que ele busca' não pode ser imediatamente identificado com o que ele produz buscando-o. para compreender o movimento em todas as suas dimensões (e, com isso, também como ele é do ponto de vista do orgânico), é preciso manter distintas a realidade do movimento em si (para nós) — a realidade do conservar-se no 'que ele é' — ao lado da realidade do movimento do ponto de vista do orgânico — a realidade do 'que ele busca'. ambos conservam sua diferença como momentos formais do conceito, e dizer que esse 'o que ele busca' é suprassumido pelo orgânico não é dizer que ele deixa, por isso, de ser formalmente distinguível.

perceba-se que aqui traçamos uma diferença entre dois pares de termos que, em hegel, funcionam como sinônimos: por um lado, ser-em-si e ser-para-outro, que se referem ao que comanda ou é comandado do ponto de vista do resultado de um processo (o que pressupõe o processo referido como concluído, fechado em si mesmo e que, portanto, tem uma 'sede de comando' própria e estável); e, por outro lado, conteúdo e forma — esta última entendida como aquilo que pode a) deixar de ter efetividade própria do ponto de vista do resultado (é o caso do inorgânico); b) continuar tendo efetividade própria, apesar de suprassumido no resultado, sendo em si ser-para-outro (como a família, a moral, a sociedade civil, etc., na reclamação de marx); ou c) ter efetividade própria porque — apesar de ser em si um ser-para-outro — é momento de um processo que não pode ser visto como concluído, cuja significação está em aberto. segue-se disso que, sobre um processo efetivamente não concluído, não se pode dizer que tenha um ser-em-si, pois o termo que o comanda, a sede da sua significação, não está dada. no entanto, hegel entende que toda diferença-formal-que-não-é-diferença-entre-dois-conteúdos é uma diferença-formal-que-é-igualdade-de-conteúdo — esquecendo que, enquanto o primeiro termo ('o que ele é', o ser-em-si do orgânico) têm um conteúdo (o conservar-se do orgânico, seu ser-para-si), o segundo (o 'que ele busca') não tem porque não tem nenhuma significação, é uma condição formal do movimento que não é exigida pelo conteúdo desse movimento, pura defasagem. isto é, se trata de uma diferença entre uma forma que tem conteúdo e uma forma sem conteúdo. após o trecho citado, hegel implicitamente tenta fornecer uma significação a tal instância formal quando diz:

"Examinando mais de perto, [vemos que] reside igualmente no conceito da coisa essa determinação de que ela é fim em si mesma. Com efeito, a coisa se conserva: isso significa que sua natureza consiste, ao mesmo tempo, em ocultar a necessidade e em apresentá-la sob a forma de uma relação contingente. É que sua liberdade, ou seu ser-para-si, consiste precisamente em comportar-se para com seu necessário como se ele fosse um indiferente. Desse modo, a coisa se apresenta como algo cujo conceito incidisse fora do seu ser." (FdE, §259)

o uso do termo 'indiferente', como já ficou claro, é equívoco, pois não se sabe se sua referência é a oposição ser-em-si/ser-para-outro, o que faria do inorgânico o 'indiferente' (aquilo que é em si ser-para-outro), e a oposição forma/conteúdo, o que faria do indiferente esse 'o que ele busca' que estamos comentando. no primeiro caso, o 'indiferente' qualificaria o inorgânico; o trecho, então, deveria ser interpretado como uma simples reiteração da definição categorial do orgânico: é o orgânico, enquanto essência, que comanda o processo que resulta em que o inorgânico seja em si um ser-para-ele, e este, que é necessário para ele, é em si indiferente. no entanto, no primeiro caso, em que 'indiferente' qualificaria 'o que ele busca', querer-se-ia dizer que a forma do fim é indiferente do próprio ponto de vista do orgânico, que ela é para ele inessencial, que é para o orgânico redutível ao seu próprio conteúdo (o conservar-se do orgânico). mas isso é absurdo, pois resultaria que esse 'o que ele busca' se identificaria, do próprio ponto de vista do orgânico, com o inorgânico enquanto tal — isto é, o inorgânico seria um ser-para-ele não só em si, mas também para ele —, o que implicaria que seu seu ser-para-si seria para ele, isto é, que o orgânico, apreendendo seu próprio conceito, já seria uma consciência-de-si.

hegel não é capaz de enxergar esse problema porque, como diz adorno, ele converte a rejeição da dialética à prima philosophia em uma filosofia do resultado, ao qual, de modo igualmente apriorístico, tudo se reduz. o que é em si ser-para-outro só pode ter como conteúdo o outro que constitui seu ser para si. nisso, hegel tem fé demais, e não de menos, no sentido do existente. é importante chamar atenção para isso porque tal redução a um conteúdo outro da forma-sem-conteúdo é precisamente o que hegel faz ao final do capítulo da 'razão', em que converte o agir absoluto da individualidade para si real no ponto de vista que o permitirá escrever a seção do espírito. mas esse agir, mesmo que absoluto, não o é porque seja completo, porque seja pleno de conteúdo. lembremos que o espírito emerge, na seção que não à toa se chama 'reino animal do espírito', do agir de uma consciência-de-si cujo fim é esse agir, que, porém, é para essa consciência-de-si a expressão de sua natureza originária — isto é, o agir aparece como forma cujo conteúdo é a natureza originária da individualidade. como referência histórica de tal figura, podemos lembrar o artista romântico, que concebe seu fazer artístico como 'expressão' de seu 'gênio', que seria o verdadeiro conteúdo do seu agir; a obra realizada aparece para ele como um outro puramente formal. esse dialética vai terminar com a constatação pela consciência de que sua obra, que para ela é expressão de sua individualidade, é para outras individualidades apenas circunstância do agir delas, de modo que sua natureza originária não pode ser aquilo que permanece na evanescência do agir. tal oposição final entre o ser permanente e o agir evanescente é eliminada com a simples dessuposição de um ser permanente além do agir evanescente, que, portanto, se torna absoluto por ausência do que o complete, um absoluto parcial, que não pode ser recolhido em um novo Uno com o qual a consciência se identifique e construa o ponto de vista da seção que, no entanto, se segue.

como hegel deixa claro ao referir a observação do orgânico à forma do primeiro Imutável da consciência infeliz — como se na razão observadora se tratasse do ponto de vista externo sobre o ser-aí do sentimento-de-si — do ponto de vista interno a este, a oposição não pode emergir enquanto tal para ele, pois é como se, em vez de o fracasso da certeza sensível impulsioná-la para a dialética da percepção, apenas a relança de volta ao início: "no ato de atingir não pode manter-se à distância como este oposto, em lugar de atingir a essência só captou a inessencialidade" (FdE, §217); a primeira forma do Imutável, uma aparição da alteridade anterior à diferenciação do si, é 'o que ele busca', e só pode ser designada enquanto tal de fora, post festum. mas, como consequência da redução na razão observadora dessa forma-sem-conteúdo designada na consciência infeliz como primeiro Imutável, é notável que hegel ignora na razão observadora a distinção entre grandezas extensivas e intensivas, tratando a relação entre a 'irritabilidade' e a 'sensibilidade' por analogia com a relação entre o buraco e o material que o enche.

mas é preciso salientar que evocar o 'ponto de vista' do animal e defender a irredutibilidade dessa pura forma do 'que ele busca', do 'primeiro Imutável', não significa defender que tal forma abriga um conteúdo que permaneça oculto e sem expressão, como um para-além inefável. de fato, esse 'primeiro Imutável' é precisamente o objeto da noção bergsoniana de 'multiplicidade qualitativa' — diferente da multiplicidade quantitativa, que descreve tanto a multiplicidade formada pelos 'istos' da certeza sensível quanto a multiplicidade formada pelas 'propriedades distintas determinadas' e pelo inorgânico (pelos termos indiferentes entre si da força exprimida), isto é, tudo que é passível de ser contado como um ao lado de outros, como unidade de uma coleção. concebida como conjunto, essa forma do 'primeiro Imutável' tem a cardinalidade do continuum, como o conjunto dos números reais: seu caráter não-contável não se pode deduzir diretamente de uma 'formalização positiva' (um oxímoro) de um contínuo, de uma apreensão imediata do seu conteúdo, mas apenas mediata, negativamente pela impossibilidade de um dispositivo de contagem que pudesse dispor de todos os elementos. a fenomenologia dessa forma é a da intuição bergsoniana da multiplicidade 'qualitativa'. mas, contrariamente a bergson, essa multiplicidade não tem nenhuma positividade própria, não tem ser-em-si; não importa como se revire o caso: ao mesmo tempo que essa forma não pode ser enquanto tal suprassumida, que seu 'conteúdo' se mantém enquanto pura alteridade, a efetividade desse 'conteúdo' é simplesmente a do constante passar-para-outro que não conserva o anterior, a negação abstrata reiterada, isto é, não se trata de conteúdo nenhum. atribuíndo ser-em-si a esse 'conteúdo', cai-se na problemática do reino animal do espírito, para cuja consciência seu agir é expressão de uma natureza originária, de uma essência abstrata e oculta. a experiência da 'sucessão pura' dos dados imediatos — isto é, o puro sentimento-de-algo-para-mim que deve ser logicamente anterior à constituição do 'mim' como correlato unário do que-é-para-mim na forma do ente unário (anterior portanto à delimitação, na introdução da fenomenologia, do saber como o que é para-mim e da verdade como o que é em-si porque anterior à constituição de uma imagem de si que permitiria a instauração de uma contagem) — não é acesso a uma positividade oculta do ser, como se esse ser positivo constituísse a origem da determinação. excluído o salto de fé, só seria possível sustentar que um ser determinado é expressão de um ser indeterminado se fosse estabelecido entre os dois algum critério de igualdade, pelo qual se verificaria que dado ser-aí efetivo constitui o modo de presença cujo sentido se encontra em tal positividade ausente no ser-aí; com isso, no entanto, essa última já seria determinada em mediação como um dos extremos de um silogismo e absorvida pelo jogo de forças. (e mesmo o salto de fé, como sabemos, não pode ele próprio se sustentar como um deus ex machina; a não ser por uma proibição frontalmente irracionalista, não se pode impedir ninguém de perguntar o que levou o dito cujo a saltar, isto é, a perguntar pela determinação do salto enquanto tal; dizer, por outro lado, que a cautela em relação ao salto é tão arbitrária quanto o salto é pura canalhice, no sentido lacaniano da palavra.)

de qualquer modo, o fato a ser assinalado é que a experiência subjetiva de tal sucessão indivisa anterior à percepção que introduz a oposição entre propriedades (por exemplo, o fonema /b/ e o fonema /p/) deixa um resto: quando surge para ela a oposição (na forma, portanto, da ausência/presença de um traço, no caso, o + ou -sonoro), se perde aquilo mesmo que esta emerge para captar: a imagem não-especular cuja especificidade (na verdade miticamente reconstituída como suposição) já se perdeu como diferença indiferente para a oposição efetiva. se trata daquilo que lacan designa como objeto pequeno a. a relação entre o sentimento-de-si do orgânico e o objeto a é sugerida pelo próprio lacan:

"O que distingue este animal falante do que se passa pelo fato de que o homem fala é que é inteiramente notável, no que concerne à minha cadela, uma cadela que poderia ser a sua, uma cadela que não tem nada de extraordinário, é que, contrariamente ao que acontece com o homem enquanto falante, ela não me toma jamais por um outro. [... A]o tomá-los por um outro, o sujeito os coloca ao nível do Outro, com A maiúsculo. É justamente o que falta na minha cadela, só há para ela o pequeno outro. Não parece que sua relação com a linguagem lhe dê acesso ao grande Outro." (sem. 9, p. 42, ênfase minha)

a cadela de lacan jamais o toma por um outro, jamais o conta como i'(a), como uma imagem entre outros, recortada em sua unaridade pela diferença opositiva da ausência/presença de um traço. para ela há apenas o pequeno a, a imediatez dos dados sensíveis que nem mesmo marcam lacan como lacan, como algo que tenha um ser-em-si, mas apenas estão, digamos, pavlovianamente associados por condicionamento como um conjunto de sensações e afetos.

na pulsão oral, temos a estrutura do sentimento-de-si hegeliano: o Outro dá 'o que ele busca', mas o sujeito permanece reduzido a seu ser-aí e não é conceito para si; a pulsão anal é um dar; mas é um dar como quem recebe, pois nela o Outro dá a oportunidade ao sujeito de ser mais do que aquilo que ele dá.

essencial é a distinção entre, de um lado, o objeto a, 'o que ele busca', a 'primeira forma do imutável', e, de outro, o inorgânico, o ser-aí que é em si ser-para-outro, o objeto da demanda, contável, imaginário. no sacrifício, a negação pela consciência-de-si do seu ser-aí, que a confirma como consciência de si, não a livra, no entanto, do vínculo ao objeto a, a esse resíduo que não é passível de ser posto pela consciência como produto de sua atividade.

( possivelmente se trata da mesma redução no 'prazer e necessidade', em que o objeto buscado é a pura diferença indiferente e há algo como a relação sexual)

jan 12 2021 ∞
jan 31 2021 +