Todos conhecem, a esse ponto, o bule de chá de russell. "De minha parte, poderia sugerir que entre a Terra e Marte há um bule de chá de porcelana girando em torno do Sol em uma órbita elíptica, e ninguém seria capaz de refutar minha asserção, tendo em vista que teria o cuidado de acrescentar que o bule de chá é pequeno demais para ser observado mesmo pelos nossos telescópios mais poderosos. Mas se afirmasse que, devido à minha asserção não poder ser refutada, seria uma presunção intolerável da razão humana duvidar dela, com razão pensariam que estou falando uma tolice. Entretanto, se a existência de tal bule de chá fosse afirmada em livros antigos, ensinada como a verdade sagrada todo domingo e instilada nas mentes das crianças na escola, a hesitação de crer em sua existência seria sinal de excentricidade e levaria o cético às atenções de um psiquiatra, numa época esclarecida, ou às atenções de um inquisidor, numa época passada." com essa figura retórica, o filósofo analítico pretendia contrargumentar a afirmação de que não é possível provar que deus não existe demonstrando que, nos termos da lógica formal, o dever de provar recai sobre aquele que quer provar a existencia de algo e não sobre aquele que quer provar sua não-existência, isto é, apontando para o ônus da prova.

ainda que seu argumento tenha algum valor filosófico, ele perde o problema essencial da religião e de todo tipo de ideologia. se a crença no bule fosse amplamente pregada e aceita numa cultura, se erguessem monumentos e criassem ícones para o bule, se ao redor dessa crença fossem desenvolvidos rituais e práticas que estruturam as relações sociais realmente existentes, isso significa que a crença no bule tem efeitos materiais e empiricamente apreensíveis. disso segue-se que as crenças possuem efeitos realmente existentes, ainda que sejam crenças falsas: ao perguntar-se a um religioso a razão de ações concretas, ele as justificará com seu deus inexistente. não é suficiente, portanto, rejeitar a crença em deus como superstição passível de ser ignorada intelectualmente: é preciso reconhecer que a própria crença falsa confere um estatuto de existência àquilo que prega simplesmente pelo fato de ela mesma existir socialmente.

aqui operamos um deslocamento na problemática analítica de verificar o valor de verdade das sentenças. essa questão se desfaz diante de outra que se impõe como muito mais importante: como é possível que a estrutura da existência se baseie não apenas em uma dicotomia entre coisas existentes e coisas não existentes, mas também comporte uma terceira categoria intermediária de coisas que não existem e existem ao mesmo tempo? em outros termos, como surge a falsidade? a teoria da ideologia é uma tentativa de elaborar sobre essa problemática.

nov 27 2017 ∞
nov 27 2017 +