hegel sobre a primeira modalidade do movimento da consciência singular em direção ao ser-Uno com o Imutável: "A consciência, por assim dizer, apenas caminha na direção do pensar e é fervor devoto [An Denken/Andacht]. Seu pensamento, sendo tal, fica em um informe badalar de sinos, ou emanação de cálidos vapores: um pensar musical que não chega ao conceito, o qual seria a única modalidade objetiva imanente. // Sem dúvida, seu objeto virá ao encontro desse sentimento interior puro e infinito, mas não se apresentará como conceitual; surgirá pois omo algo estranho. Está presente, assim, o movimento interior da alma pura, que se sente a si mesma, mas se sente doloridamente, como cisão. Movimento de uma nostalgia infinita, que tem a certeza que sua essência é aquela alma pura, puro pensar que se pensa como singularidade; e a certeza de ser conhecida e reconhecida por aquele objeto, porquanto ele se pensa como singularidade." (fenomenologia, p. 163)
adorno em "la función del contrapunto en la nueva música": Hasta donde la experiencia occidental alcanza, a la obra de arte le es esencial que lo que suceda en su núcleo espiritual se preste también a la manifestación.
adorno sobre a diferença entre a linguagem denotativa [meinende Sprache] e a música: "A linguagem denotativa gostaria de dizer o absoluto de maneira mediada, mas este lhe escapa em cada intenção particular, ficando para trás em cada uma delas. A música encontra o absoluto imediatamente, mas nesse mesmo instante ele se torna obscuro, assim como uma luz muito intensa que, ofuscando o olhar, não deixa mais ver aquilo que no entanto é totalmente visível." (quasi una fantasia, p. 39)
confrontando a 'nostalgia musical' de hegel com o comentário adorniano sobre a linguagem musical, podemos pensar um 'universal em si' da música: ela é a experiência imediata do absoluto indeterminado. na verdade, essa definição é redundante do ponto de vista da dialética, pois para ela a determinação lógica é não é senão a forma da mediação real. mas precisamente o que a dialética negativa não nos autoriza a fazer é pensar universais em si, figuras gerais determinadas que não estejam vinculadas firmemente a experiências concretas e que elas não possam depor. essa talvez seja a diferença crucial da dialética idealista para a dialética materialista: por mais que essa última retenha a mesma 'problemática', o mesmo método de dissolução das oposições pela negação determinada, ela não permite propor o circuito de negações resultante como uma nova positividade, que é a clássica pirueta hegeliana pela qual o problema é apresentado como sua própria solução e o filósofo abancado na escrivaninha pode se sentir poderoso na posse do saber absoluto. ela não pode produzir universais em si porque ela só admite que emerjam constelações que mantenham uma firme conexão com experiências concretas ou determinando-as completamente ou reconhecendo sua incapacidade provisória de fazê-lo. se ela se engaja em debates 'filosóficos', isto é, que circulam no terreno puro do conceito, não deve ser para propor definições positivas, mas para fazer a crítica imanente de qualquer definição positiva (ainda que isso possa assumir a forma textual de uma proposição positiva, o que já é arriscado). o sujeito da dialética negativa fica interditado de se identificar com o circuito total da negatividade como totalidade positiva, porque ele não é senão 'coerção poderosa' que é a imagem do capital. por isso sua relação com seus objetos não pode ser pensada como deglutição, mas só como mímese. (obs: talvez por isso a hegelianização total de adorno operada por safatle tenha a consequência de que ele implicitamente acuse paulo arantes de contradição performativa, de não explicitar a posição enunciativa da qual ele fala; arantes se recusa a fazer isso porque isso seria autorizar a negação da negação como uma positividade) não pode ser outra a consequência de libertar a arte da condição miserável em que ela se encontra no sistema hegeliano, como momento evanescente na constituição do espírito absoluto e sua identidade cognitiva sem lastro, que é a identidade do valor.
isso nos dá o ensejo para pensar as formas históricas particulares da música. podemos pensar uma música cultual, que é 'em si para outro', que está para um ritual determinado de uma cultura determinada como o inorgânico está para o orgânico. podemos então pensar a música autônoma de adorno, que é 'em si para si', cuja relação com o outro é por ela interiorizada pela mediação estética da forma musical (e, no fundo, seria difícil pensar outra maneira de fazê-lo senão pela a justificação em ato do tonalismo em beethoven). com a deposição dessa figura, é possível pensar a música pop que não adere à indústria cultural como um 'em si para o quê?', como fragmento de um ritual inexistente que seria sua essência. a questão da autonomia se torna incerta para pensá-la, pois é uma heteronomia cuja sede não é localizável na atualidade. essa proposta ganha sentido se lembrarmos do comentário de adorno:
"As obras de arte implicam em si mesmas uma relação entre o interesse e a sua recusa, contrariamente à interpretação kantiana e freudiana. Mesmo o comportamento contemplativo perante as obras de arte, extirpado dos objectos da acção, se experimenta como denúncia de uma práxis imediata e, por conseguinte, como algo também prático, como resistência a envolver-se. Apenas as obras de arte, que é possível interpretar como modos de conduta, têm a sua raison d'être. A arte não é unicamente o substituto de uma práxis melhor do que a até agora dominante, mas também crítica da práxis enquanto dominação da autoconservação brutal no interior do estado de coisas vigente e por amor dele. Censura as mentiras da produção por ela mesma, opta por um estado da práxis situado para além do anátema do trabalho." (teoria estética, p. 23)
"Las obras de arte implican en sí mismas una relación entre el interés y la renuncia a él, en contra tanto de su interpretación kantiana como de su interpretación freudiana. Incluso el comportamiento contemplativo con las obras de arte, arrancado a los objetos de acción, se siente como renuncia a la praxis inmediata, como algo práctico, como resistencia a la colaboración. Sólo las obras de arte que llevan la huella de un modo de comportarse tienen su raison d’être . El arte no es sólo el lugarteniente de una praxis mejor que la dominante hasta hoy, sino también la crítica de la praxis en tanto que dominio de la autoconservación brutal en medio y en nombre de lo existente. El arte desmiente a la producción en su propio beneficio; opta por una praxis liberada del hechizo del trabajo." (akal)
adorno defende que a mediação estética da obra de arte autônoma deve ser interpretada como o 'substituto', o 'lugarteniente' de uma práxis melhor, e que ela deveria ser interpretada como um modo de conduta que não fosse o da autoconservação brutal. com isso, pressupõe que qualquer aposta na instauração de um modo de conduta que desde já não o fosse já seria mentira. seria a posição dos 'anglófilos' da minima moralia: louvor de uma aristocracia que vive um cerimonial constante enquanto, em outro lugar, seus capatazes chicoteiam seus 'subjects'. tal cerimonial quer fundir desde já a experiência estética com a experiência cotidiana quando as bases materiais desse cotidiano ainda são a dominação. mas será essa a posição de lord henry wotton?
"'I don't agree with a single word that you have said, and, what is more, Harry, I feel sure you don't either.' Lord Henry stroked his pointed beard, and tapped the toe of his patent-leather boot with a tasseled ebony cane. 'How English you are, Basil! That is the second time you have made that observation. If one puts forward an idea to a true Englishman — always a rash thing to do — he never dreams of considering whether one is right or wrong. The only thing he considers of any importance is whether one believes it oneself. Now, the value of an idea has nothing whatsoever to do with the sincerity of the man who expresses it. Indeed, the probabilities are that the more insincere the man is, the more purely intellectual will the idea be, as in that case it will not be coloured by either his wants, his desires, or his prejudices. However, I don't propose to discuss politics, sociology or metaphysics with you. I like persons better than principles and I like persons with no principles better than anything else in the world. Tell me more about Mr Dorian Gray. How often do you see him?'"
é preciso muita atenção para que o conteúdo dessa fala não se perca em meio a seu caráter explicitamente absurdo e dandístico. contra o inglês, para o qual o que importa é a sinceridade, a autenticidade (cf. MM af. 99), e sua ilusão de um eu fundamental e autoidêntico que, no fundo, não defende a ideia proposta, mas, se identificando completamente com a ideia que expressa, defende a sua própria posição subjetiva, age pela autoconservação brutal. mas sabemos que 'as únicas ideias verdadeiras são aquelas que não compreendem a si mesmas', e isso em ambos os sentidos: tanto porque já seriam falsas caso estabelecessem a reflexão que as permitiria identificar-se a si mesmas quanto porque a verdade está na força de incompreensão que elas causam, na sua desestabilização do saber. a autenticidade fascista, que estetiza a política, é a estetização imediata do si, que já não se distancia reflexivamente de suas próprias ideias e as convertem em certeza sensível, isto é, são estéticas por regressão simples. quem é explicitamente insincero é mais verdadeiro porque marca a diferença entre a própria posição subjetiva e a ideia que mimetiza. como artificialidade compromissada, atinge a estética sem recorrer à identidade cognitiva e à certeza subjetiva. inesperadamente, talvez seja em oscar wilde, — para quem 'a naturalidade é apenas a mais irritante das poses' — que encontremos a distinção fundamental da 'estetização da política' com a qual benjamin caracterizou o fascismo. a 'politização da estética', no sentido objetivo do genitivo, não poderia ser submissão da estética ao político, mas aposta na identidade especificamente estética como modo de conduta. seria o caso de se perguntar se a diferença entre a ideia e o sujeito não seria homóloga à diferenciação interna com que a obra autônoma vincula seus elementos constitutivos; e se tal 'modo de conduta' mimético não constitui, em diferença à mediação cognitiva da identidade, o caráter específico da mediação estética como 'magia libertada da mentira de ser verdade'. o erro de wilde estaria em ainda afirmar a alternativa: 'one must either be a work of art or wear a work of art', pois o que é seu romance senão a demonstração das consequências de tentar 'ser' uma obra de arte? a insinceridade explícita da vestimenta é a de alphonse allais que apontava para uma mulher na rua e dizia: "olhem só, por baixo da roupa ela está completamente nua!"
esse modo de conduta estético, essa mímese efêmera de um outro que tampouco é absoluto, mas que também se constitui por mímese, não aparece como um 'em si para si'. só pode aparecer como 'em si para quem?' ou 'em si para o que?'. tal modo de conduta não pode ser funcionalizado por um etos, sua lógica imanente rejeita a identificação que uma eticidade exige. ao mesmo tempo que torna explícito que sua essência não é interna, tal essência não aparece no outro lugar como uma sede de positividade, mas como continuação do jogo. é claro, continuar esse jogo se torna perigoso e, em determinadas circunstâncias, se converte em temeridade — no entanto, não é essa brava temeridade que vemos nas respostas deliciosas que wilde dirige ao seu acusador, e não foi o episódio que ela causou uma virada de jogo tão essencial para a constituição de uma consciência crítica em relação à homofobia? o fato de que, quando aparece a necessidade prática da autoconservação, a melhor escolha é, de fato, o fuzil e a palavra de ordem não retira essa virtude, e, se não é impensável que o cenáculo se converta em partido revolucionário, isso impõe a questão de se tal preparação não seria a condição sine qua non pra que, quando chegada a hora, o partido se reconvertesse em cenáculo em vez de se eternizar como estado. (cf. romantismo revolucionário do löwy)
(daqui, a artificialidade de 'ghosts of my life' e a crítica musical inglesa, que não critica porque mimetiza; se torna frágil quando se consolida em um etos para o qual a música serve de ritual. então, a gravação como lembrança de um acontecimento inexistente, como mímese de uma positividade ausente; o modo como a questão das 'imagens musicais' remetem a e (possivelmente) deslocam um etos (os dedilhados folk de johnny marr). por fim, a 'ingenuidade não-ingênua' dos smiths como figura dessa artificialidade mimética.)
FICAR DE OLHO nos momentos em que adorno for tratar a relação entre as partes e o todo na teoria estética com a categoria da autonomia; problema da 'perfeição' da obra, com o qual 'a identidade estética defende o não-idêntico'. minha hipótese acima tende a tratar a 'autonomia' nos termos da autonomização, como procedimentos negativos com relação a fins externos, ao contrario de uma concepção weberiana de autonomização das esferas, em que valores estéticos positivos passam a orientar as práticas artísticas.
a questão da composição entre obra e modo de conduta está implicada no caráter da reprodutibilidade técnica, e afeta especialmente o cinema e a música pop. com a arte tecnicamente reprodutível, assim como em tudo que diz respeito à assim chamada 'propriedade intelectual', acontece uma disrupção da separação entre o ato de troca (que estabelece a síntese social) e o ato de uso. nas artes não reprodutíveis, fazia sentido confinar a investigação da autonomia estética na apreciação privada do objeto, mas nas artes reprodutíveis, os contextos de uso são supostos pela obra e devem ser entendidos como parte dela. como o que importa, portanto, é o acontecimento que a obra supõe e atualiza, deve-se investigar que mundo a peça supõe e/ou produz. repensar benjamin.