no centro do argumento de paulo arantes sobre a ideologia francesa está a recuperação de um tema crítico de longa data na tradição estética alemã. vejamos seu argumento sobre foucault: "Em todo caso, qualquer leitor de Foucault haverá de acompanhar Perry Andreson na observação segundo a qual atravessaria a obra de Foucault, desde a História da loucura, um apelo constante a uma 'experiência primordial indômita", espécie de "acusação inominável" por conta de um Outro originário. Como também concordaria com Carlo Ginzburg, quando este se refere ao 'populismo negro' que inspira a análise — ou melhor, o confisco de qualquer interpretação — do caso Pierre Rivière. Sendo o estupor e o silêncio as únicas reações autorizadas, fica apenas o 'êxtase diante do estranhamento absoluto'. Uma abstenção de inequívoca índole estetizante. Algo como um frisson estético-epistemológico que acompanha o abandono ostensivo da ideia materialista de Crítica. Em lugar do esclarescimento dos conflitos reprimidos e escamoteados, o calafrio diante da indiferenciação das formações ideológicas sem avesso." (FeD, p. 27) então, retraçará isso a uma das tendências metaestéticas do modernismo: "Viria então ao caso relembrar um dos vínculos definidores da vanguarda artística do período heróico, justamente a relação polêmica e ambivalente com as formas arcaicas da experiência, abafadas pela normalização promovida pela cultura burguesa em seu apogeu, primitivismo a um tempo pós-burguês e regressivo, cujo choque detonador os franceses — dos cubistas aos surrealistas — foram os primeiros a elaborar e trazer para a linha de frente da bancarrota cultural do capitalismo [...]." (p. 39)

fredric jameson também percebeu isso no pós-modernismo estético, retomando adorno na sua importante distinção entre paródia e pastiche: "The disappearance of the individual subject, along with its formal consequence, the increasing unavailability of the personal style, engender the well-nigh universal practice today of what may be called pastiche. This concept, which we owe to Thomas Mann (in Doktor Faustus), who owed it in turn to Adorno's great work on the two paths of advanced musical experimentation (Schoenberg's innovative planification and Stravinsky's irrational eclecticism), is to be sharply distinguished from the more readily received idea of parody. To be sure, parody found a fertile area in the idiosyncracies of the moderns and their "inimitable" styles: the Faulknerian long sentence, for example, with its breathless gerundives; Lawrentian nature imagery punctuated by testy colloquialism; Wallace Stevens's inveterate hypostasis of nonsubstantive parts of speech ("the intricate evasions of as"); the fateful (but finally predictable) swoops in Mahler from high orchestral pathos into village accordion sentiment; Heidegger's meditative-solemn practice of the false etymology as a mode of "proof" ...All these strike one as somehow characteristic, insofar as they ostentatiously deviate from a norm which then reasserts itself, in a not necessarily unfriendly way, by a systematic mimicry of their willful eccentricities. Yet in the dialectical leap from quantity to quality, the explosion of modern literature into a host of distinct private styles and mannerisms has been followed by a linguistic fragmentation of social life itself to the point where the norm itself is eclipsed: reduced to a neutral and reified media speech (far enough from the Utopian aspirations of the inventors of Esperanto or Basic English), which itself then becomes but one more idiolect among many. Modernist styles thereby become postmodernist codes. And that the stupendous proliferation of social codes today into professional and disciplinary jargons (but also into the badges of affirmation of ethnic, gender, race, religious, and class-factional adhesion) is also a political phenomenon, the problem of micropolitics sufficiently demonstrates. If the ideas of a ruling class were once the dominant (or hegemonic) ideology of bourgeois society, the advanced capitalist countries today are now a field of stylistic and discursive heterogeneity without a norm. Faceless masters continue to inflect the economic strategies which constrain our existences, but they no longer need to impose their speech (or are henceforth unable to); and the postliteracy of the late capitalist world reflects not only the absence of any great collective project but also the unavailability of the older national language itself. In this situation parody finds itself without a vocation; it has lived, and that strange new thing pastiche slowly comes to take its place. Pastiche is, like parody, the imitation of a peculiar or unique, idiosyncratic style, the wearing of a linguistic mask, speech in a dead language. But it is a neutral practice of such mimicry, without any of parody's ulterior motives, amputated of the satiric impulse, devoid of laughter and of any conviction that alongside the abnormal tongue you have momentarily borrowed, some healthy linguistic normality still exists. Pastiche is thus blank parody, a statue with blind eyeballs: it is to parody what that other interesting and historically original modern thing, the practice of a kind of blank irony, is to what Wayne Booth calls the "stable ironies" of the eighteenth century. It would therefore begin to seem that Adorno's prophetic diagnosis has been realized, albeit in a negative way: not Schönberg (the sterility of whose achieved system he already glimpsed) but Stravinsky is the true precursor of postmodern cultural production. For with the collapse of the high-modernist ideology of style -- what is as unique and unmistakable as your own fingerprints, as incomparable as your own body (the very source, for an early Roland Barthes, of stylistic invention and innovation) -- the producers of culture have nowhere to turn but to the -17- past: the imitation of dead styles, speech through all the masks and voices stored up in the imaginary museum of a now global culture."

de fato, aqui mora o argumento fundamental de adorno contra stravinski, do qual se depreende o conceito preciso da racionalização como subjetivação autônoma: "Enquanto o momento artificial da música, enquanto o 'fazer' readquire consciência de si mesmo e se afirma abertamente, perde, contudo, o estímulo da mentira, que lhe permitia representar-se como som puro da alma, primordial e não condicionado. Esta é a verdade que se conquista ao expulsar o sujeito. Em lugar do bien fait dos franceses, vale aqui um mal fait engenhoso: a música ao quadrado dá a entender que não é um microcosmo concluso, mas somente o reflexo do rompido e vazio de sentido. [...] A paródia, isto é, a forma fundamental da música ao quadrado, significa imitar algo e, imitando-o, ridicularizá-lo. Semelhante atitude, que a princípio parece suspeita aos burgueses, por considerá-la própria do músico intelectual, se adapta facilmente à regressão. [...] Algo que não está inteiramente domesticado, algo indomitamente mimético — a natureza — está oculto precisamente nesta não-natureza: talvez assim dancem os selvagens ao redor de um missionário antes de devorá-lo. Mas o impulso nasceu da pressão da civilização, que proíbe uma imitação amorosa e somente a tolera se ela está mutilada. [...] É como se não pudesse exigir de si mesma, quanto ao conteúdo da composição, nada mais do que a mesquinhez da música parodiada, em cuja imagem negativa de compraz. O perigo do literato musical, com todas as suas formas de reação, com esse gesto afetado do que prefere o music hall ao Parsifal, o piano mecânico ao som das cordas ou uma ilusória América do Norte romântica ao amedrontado romantismo alemão, não representa um excesso de consciência, de perspicácia ou de sentido da diferenciação, mas significa tão-somente empobrecimento. E este empobrecimento torna-se evidente logo que a música ao quadrado suprime as aspas." (FNM, pp. 143-144)

o fato é que encontramos uma instância desse argumento já em schoenberg contra os impressionistas. discutindo a proibição sobre as oitavas e quintas paralelas, o compositor comenta em nota o procedimento do seu "desrecalque": "Dado que as sucessões de oitavas e quintas paralelas estiveram em desuso durante séculos, o ouvido ao escutá-las novamente, teve-as por novas, por estranhas. Certamente, esta circunstância pronuncia-se também (nada posso fazer: é a circunstância que se pronuncia) contra esse método pseudomoderno de construir melodias completas e similares com quintas, aproveitando-se da novidade e estranheza que causam. A mim, resulta-me desagradável; não porque pareça novo, e nem porque em realidade seja antigo, ou tampouco por não possuir maiores méritos do que havia nas sucessões de sextas, escritas em casos semelhantes pelos predecessores desses inovadores. O que talvez me aborreça seja a malícia e a empáfia que tal procedimento manifesta: por isso mesmo é deselegante. Parece-me, contudo, cada vez mais, que há algo que justo na proibição das quintas paralelas, ainda que tenha sido interpretado equivocamente. A saber: a timidez perante a consonância, o que talvez corresponda à tendência inversa: a inclusão na obra das consonâncias mais afastadas, ou seja, das dissonâncias." (H, p. 120) ou seja, ainda que a proibição das quintas paralelas tenha se reificado em uma regra acadêmica arbitrária no contraponto, a sua violação imediata é primitivista, não percebe que ela é um produto da tendência progressista de racionalização do material por recurso a "consonâncias mais afastadas".

enfim, um dos fios desse argumento pode ser retraçado à discussão sobre ironia e sátira (pela qual entende-se swift), retomada por lukács do romantismo alemão: "O autorreconhecimento, ou seja, a autossuperação da subjetividade, foi chamado de ironia pelos primeiros teóricos do Romantismo. Como constituínte formal da forma romanesca, significa ela uma cisão interna do sujeito normativamente criador em uma subjetividade como interioridade [...] e uma subjetividade que desvela a abstração [...] e que, mediante esse desvelamento, ainda que mantenha intacta a dualidade do mundo, ao mesmo tempo vislumbra e configura um mundo unitário no condicionamento recíproco dos elementos essencialmente alheios entre si. Essa unidade, no entanto, é puramente formal: o alheamento e a hostilidade dos mundos interior e exterior não são superados, e o sujeito desse reconhecimento é tão empírico, ou seja, tão cativo do mundo e confinado à sua interioridade, quanto aqueles que se tornaram os seus objetos. Isso retira da ironia toda a superioridade fria e abstrata que reduziria a forma objetiva a uma forma subjetiva, à sátira, e a totalidade a um aspecto, já que obriga o sujeito contemplador e criador a aplicar em si próprio o seu conhecimento do mundo, a tomar a si mesmo, e assim também a suas criaturas, como livre objeto da livre ironia — em suma, a transformar-se num sujeito puramente receptivo, prescrito normativamente para a grande épica." (TdR, p. 75-76) a sátira, por outro lado, estaria baseada no menosprezo de um lado para alçar o outro à posição de essencial.

isso vai até o fulcro da questão: o problema da sátira/pastiche é essa desistência de que a reflexão implique em uma superação, como autocrítica da subjetividade interior ou como interpretação do facta bruta horripilante, do 'comment c'est', como diria adorno sobre flaubert e stravinski. daí o recurso ao primitivismo ou à "experiência originária indômita". se trata do esfacelamento da possibilidade de reconstruir a continuidade da experiência para o sujeito, nem pela "síntese a priori" nem pela negação determinada — daí a necessidade, para adorno, de construir a sucessividade temporal. se trata de desistir diretamente da utopia em vez de fazer a crítica imanente que permitiria retormá-la mais adiante. diz foucault no debate com chomsky que estamos muito contaminados pela sociedade burguesa para pensar numa utopia que não seja ela mesma burguesa. conclusão: melhor então nem tentar, para não fracassar.

seria o caso ainda refletir sobre qual o destino do diagnóstico hegeliano sobre a ironia romântica como ela mesma um jogo infinitamente leve sobre o nada. (ver o curso de estética I). será a dialética negativa uma retomada da ironia contra a "totalização"? questão para perguntar ao ressentimento da dialética.

hegel distigue a ironia do cômico; este é definido como superior por mostrar como nulo o que é em-si nulo, a dissimulação. naquilo, ele se aproxima da sátira lukacsiana; mas não pode essencializar seu outro.

may 28 2021 ∞
aug 13 2021 +