todas as ruas nas minhas memorias são sempre vazias todas as minhas memórias que são memórias são memórias de algo que não aconteceu
buscando a rua mais vazia, eu encontrei uma banca no meio da estranha geometria das calçadas da tijuca dos entremeios a banca era um sebo e eu entrei e cuidava dela uma moça gorda com dentes muito tortos e uma tatuagem dos dragões targaryen. eu estava com uma medalha da casa stark. eu não me lembro se chegamos a conversar ou se eu apenas desejei que conversássemos. eu comprei o livro do augusto dos anjos numa linda edição em capa dura, preta, com detalhes vermelhos. aquele livro, e todos os vinis que eu comprei, eu tomei como testemunhas de que em algum momento algo aconteceu, como se eu parasitasse todos os encontros e as celebrações e os momentos que foram vividos ao som de, sobre o fundo de, acompanhado de, como se eu experimentasse não o livro, não a música, não o filme, mas a ausência daquilo de que a música era o ambiente, a circunstância, o setting, como se a música fosse a embalagem vazia de uma vida que já morreu, impregnada do seu cheiro.
essas letras pareciam testemunhar algo que havia sido público, que um dia todos souberam e participaram, uma festa na rua ou num bar que se extendia por todo o mundo. mas todas as minhas memórias, mesmo as que envolvem muitas pessoas, são tratadas como rodeadas de um vazio despovoado, de uma ausencia de testemunho, de uma gota de havência que evapora.
por que eu não coleciono mais? tenho sido acometido da questão sobre se minha felicidade é um índice de que desisti, arreguei, morri, me integrei e o buraco das minhas músicas foi moído com palavras traduzidas do alemão por desconhecidos e as vigas secas de angulos retos que elas botam por dentro das coisas. amanhã vou ter deixado disso, mas nesse momento eu me permito me perguntar se algo de realmente importante pode se rarefazer quando nos detemos sobre esse algo. a permanencia não é a única forma do que vale (e foi difícil encontrar uma palavra para designar 'o que vale' que não passasse pela permanência, pela lembrança, a atenção, a consciência, a museificação). ora, é que minha sede de teoria é uma continuação da museificação da minha própria experiência que, parando pra pensar, talvez eu nunca tenha questionado que eu situe seu princípio no momento inaugural em que, de madrugada, na clausura insuportável da minha infância que já mostrava sinais de desistência, eu vi o clipe de 'you only live once' na mtv. pode haver um modelo mais acabado da minha museificação que esse? a impossibilidade de viver outra vez, o afogamento na agua negra, sendo assistido no momento mesmo em que miticamente eu me dobrei sobre mim mesmo. como alguém que divesse despertado para a vida com o baque do último corpo vivente contra o chão.
é sobre esse modelo que preciso pensar o que eu chamo de nostalgia e que talvez seja uma má palavra porque, por definição, aquele que a sente nunca esteve lá ou naquele momento; sente que o perdeu, que chegou tarde demais, que time is out of joint, que a afeição por este isto só se justifica porque qualquer continuidade da tradição foi quebrada, todos os encarregados de transmitir se renderam ou fracassaram e não sobrou nenhum continuador legitimamente iniciado e os únicos resquícios estão na mão de um alienígena que se apaixonou por eles quase como um cachorro que se afeiçoa por um brinquedo que reproduz um personagem de filme que o cachorro não poderia ter apreciado, mas que o cachorro sente que se refere a algo pra além do tosco pedaço de plástico. será uma violência contra a vitória de samotrácia supor que sua parte mais importante é a sua cabeça? sonhar, como tom verlaine, com o amparo aconchegante dos braços da venus de milo. pode-se sempre proceder de modo responsável e entediante, lembrar o fragmento e a ruína do romantismo e redescrever toda transmissão como um processo desse tipo e, com isso, apagar toda a especificidade dessa experiência, mas há algo de especificamente contemporâneo na obra de arte que se imagina como um pedaço de alguma coisa que nunca existiu, como se criando o pedaço, se estabelecesse retroativamente e ex-nihilo o lugar na história da coisa de que se era um pedaço. não se trata de uma jogada a la pierre menard, em que as circunstâncias recriam a presença ostensiva da coisa, nem de um culto do perdido pelo perdido, nem do resto como código secreto de um perdido cuja cifra foi preservada, mas da criação de uma marca, de um arranhão deixado sem querer numa coisa por algo que nunca existiu e cuja não-existência é testemunhada pelo arranhão que não o recria, apenas indica que houve um algo. toda gravação tem esse caráter de arranhão parcial produzido por um acontecimento em uma matéria que por acaso estava por perto e a única maneira correta de apreciá-la é fechar os olhos e anular a presença de tudo que não seja o pedaço no qual a marca foi gravada.
um novo desenvolvimento: talvez minha nostalgia romântica se diferencie da idealização do passado porque ela não pode designar nenhum momento (da minha vida ou da história) a que se queira retornar em sua totalidade; por exemplo, sou nostálgico em relação à minha adolescência deprimida. mas deus me livre retornar a ela: minha nostalgia se liga à intensidade das sensações, dos encontros singulares com obras de arte e pessoas, coisas fugazes cuja parcialidade redime esse momento da minha vida por inteiro, como se sua verdade fosse esse aspecto parcial. isto é, a 'era' é fisgada pela nostalgia a partir de seu traço parcial, em que tudo aparece como só podendo ser lido por ele; as mesmas ocorrências lidas a partir de outros aspectos fariam a era rapidamente despencar ao inferno. talvez seja essa a virtude da nostalgia: a possibilidade de se entregar por completo a um traço singular de beleza vivenciada cuja não-identidade absorve para si todo o ruim. e talvez resida aí o perigo de sua associação ao fascismo, ao mesmo tempo em que a força de sua associação à revolução real.
só o romantismo pode ser materialista sem cair no materialismo vulgar: mas um que se baseie no testemunho da não-identidade, para o qual a única materialidade é a da relíquia. um anticapitalismo futurista não pode evitar cair na afirmação do horror do presente como fundamento da sua 'materialidade', isto é, na confiança 'desterritorializante' na avassalação do capital e sua conversão do mundo num problema contábil (como lenin, para quem a fábrica é pré-figuração do partido; tudo isso tende ao aceleracionismo). diante desses, é preferível até a crítica inocente da coisificação das pessoas que não percebe ser ela o complemento da personificação das coisas. mas só a utopia que mora no traço parcial e evanecente, na relíquia como testemunho do não-identico, pode fornecer a âncora de um pensamento que não caia nem na certeza psicótica da confiança no progresso nem no culto à essencia perdida.
o ventilador de chão da vovó sylvia e seu painel, que eu girava junto comigo pela tarde, levantando as beiradas do forro do sofá em que ela dormia. eu me lembro de sua voz, mas a imagem dela que tenho na memória já é da estaticidade das fotografias vistas depois, sem qualquer traço de movimento vivo.
o momento em que, curvando e tensamente apoiado nos meus joelhos rijos, li o ultimo capítulo do dorian gray, e depois li outra vez.
ler a minima moralia: ao retornar do estado de kairós, a primeira coisa que se faz é olhar as horas: é impossível saber quanto tempo se passou. nenhuma abstração é tão absurda quanto tratar essa imediatez como da mesma ordem da 'imediatez' do filme de ação ou do sertanejo universitário. anular a capacidade de atenção e transmutar a atenção na participação são coisas tão diferentes quanto um ataque epilético e uma pintura de pollock. ao falar do processo de trabalho, marx compreendeu erroneamente que a atenção e o não-relaxamento são uma mesma coisa. afinal, a atenção é sumamente ambígua: prestar atenção é reduzir toda a experiência subjetiva a um único ponto sensível. a riqueza de uma é a riqueza do outro. o jogo não pressupõe relaxamento, mas, como o sexo, esforço feliz; só ele garante o engajamento e a não subordinação do outro ao cálculo do prazer. pois o relaxamento não pode nunca ser total e não é nada senão o cálculo da atenção necessária ao revenue de prazer. a atenção verdadeira é a supressão desse cálculo por incapacidade diante de.
existem dois polos no que se quer dizer com 'coleção': aquela em que o item mais importante é o que falta e aquela em que cada item não é senão a história de um encontro. a coleção ideal é as duas coisas ao mesmo tempo. (a coleção do imigrante de boym: "Each apartment collection presents at once a fragmentary biography of the inhabitant and a display of collective memory. The collections set the stage for intimate experiences."; a coleção do colecionador de simon reynolds) toda a história do encontro com o artefato, assim como toda teoria que se faça sobre ele, não faz um círculo fechado nem flutua no nada, mas está pendurada num traço mínimo do objeto, no ponto de fuga da crítica em que fetiche e enigma se cruzam.
não se pode dissociar arte e ornamento porque o verdadeiro caráter da arte autônoma não é a de um mundo completo em si, mas de um ornamento sem ornamentado.
a inversão completa do sentido da internet pela dinâmica atual das redes sociais pode ser completamente apreendida pelo que aconteceu com o instagram. de espaço para estoque de banalidades opacas, de preferencia ainda mais opacizadas pelo uso criativo dos filtros, em que se estava sempre sozinho com objetos; para espaço de exposição translúcida, em que reina a admissão perversa de que a mediação do filtro está a serviço da falsa imediatez e em que reina a oposição entre aquele que acompanha a timeline e está invariavelmente sozinho e sacrificado pelo tédio e a sequência de falsas janelas para a realização pessoal e coletiva na felicidade forjada das fotos; janelas que não podem ser atravessadas, pois do outro lado há sempre um outro entediado; janelas que dão para si mesmas.