a música séria dispõe 'livremente' do tempo e da reflexão sobre seu conceito como meio de elaboração da sua linguagem musical, sendo o poder de significação de cada peça retirado da construção autônoma de articulações da sua forma temporal, que metaforiza a relação do sujeito ao tempo. a música pop não; ela está heteronomamente ligada à estereotipia das suas imagens sonoras; seu átomo é o sample, que não pode ter sua referencialidade mínima dissolvida. a música séria veria nele uma Einfall, e o decomporia analiticamente como significante, reenviando-o à linguagem musical de onde ele retira seus meios de articulação interna. mas a música pop vê nele um objeto investido, como um ídolo, de um poder oculto e irresistível que ele emana. esse poder não é outra coisa que o vínculo libidinal das massas a ele, seu caráter específico moldado e calcificado por sua história. mas é da essência desse poder da imagem sonora não aparecer como resultado de um processo histórico, mas como puro objeto sensual desprovido de conceito, que não diz nada senão sua imediatez. é assim que a escuta pop percebe a melodia chiclete ou o timbre de um cantor ou um padrão rítmico: enquanto, pela familiaridade da constituição musical das imagens, a memória opera às suas costas suas complicadas operações de recursividade infinita, ele não as interpreta nesse nível, mas permanece na sua exterioridade figurativa, que se converte para ele no em-si da imagem.

assim podemos começar a problematizar a crítica de adorno ao 'caráter culinário' do som: até a inflexão mais sutil de uma gravação dotada de feitiço encerra uma história que o explica. a reflexão sobre a música pop começa pela reflexão sobre esse tempo preso em um amuleto mágico que ela prefere preservar em seu mistério por não conseguir rompê-lo sem que se apague também o seu feitiço singular, que ela não pode desistir de integrar. o que adorno sente como o 'transcendental' da música, sua forma temporal atada à sucessividade, na qual algo apresentado se transforma, em que algo análogo ao tematismo é o último horizonte, é, na verdade, o grito que ressoa no fundo da memória diante das imagens sonoras reificadas para que sua história seja contada e seu feitiço se rompa. esse não é, portanto, uma ontologia da música, mas uma (est)ética: a música não pode abolir essa meta sem abolir sua própria autonomia-para-o-objeto. o problema do conceito de adorno de tempo musical talvez resida em um privilégio inusitado da literatura na sua estética das artes temporais, que faz pesar sobre a música uma identificação entre sua sucessividade temporal específica e a sucessividade da narrativa. é o que sugere a primazia da 'antifonia motívica', do motivo como 'zeitdifferential', que funciona como um protagonista que passa por aventuras que o transformam e que o ouvinte pode acompanhar, 'compor junto', pelo mesmo processo de identificação histérica com o qual ele 'vive' a narrativa clássica. a acusação a adorno de depender, nesse ponto, da estética transcendental kantiana deve ser invertida: é a escuta média que permanece organizada pelo tempo espacializado, e toda a música que abdica de alterar esse estado de coisas compromete sua orientação mais íntima. mas ela só pode alterá-lo por meio de si mesmo, e não contrapondo-a a outras estéticas cuja diferença seria pretensamente irredutível, como se a redução violenta operada pelo princípio da identidade em operação na estética transcendental desse ouvidos a isso. a forma-sample é logicamente idêntica à forma-mercadoria como átomo da música: não é possível antecipar sua superação sem que ela vire autarquia e se volte com desprezo ao seu outro, com o que ela escorrega para a heteronomia social.

esse 'mal de arquivo' que caracteriza a cultura pop, sua superabundância de lembranças não integradas acumulando num estoque insondável de gravações, surge como oposição à lógica neoliberal que marca todos os objetos com a obsolescência programada (as mercadorias, mas também as relações humanas e os projetos políticos) e planifica o horizonte de expectativas do sujeito em uma presentificação total, de modo que ele, devassado pela constante enxurrada de catástrofes e estímulos que vão e vem, não se vincule a nada e esteja subjetivamente anestesiado o suficiente para a qualquer momento abandonar o emprego, os amigos, o amante, a família. é a isso que diz respeito a insistência no fragmento de produto musical esquecido e enterrado há muito tempo, que o colecionador de obscuridades musicais recoleta e põe em circulação como sample. para ele, o imperativo de dissolver imediatamente seu achado, sobre o qual tanto foi projetado em sua solidão inconsolável, em cliché de uma história do desenvolvimento musical que já o deixou para trás, se assemelha demais a essa violência inaceitável. é claro que há o fetiche da nostalgia, que em sua insistência monótona no conjunto restrito de objetos que ele coletou na sua juventude, os preserva esterilizados pelo cinismo, sem qualquer engajamento ou crença real em seu poder. mas igualmente ruim é o ressentimento em relação a tudo que reluz, que desvincula o sujeito, em seu recolhimento total, dos gestos inesperadamente significativos da música pop; no fundo, isso é apenas o resguardo que resulta da frustração constante. são duas formas de desistir. contra elas, o colecionador de obscuridades eleva sua enervação até o absurdo e se mantém atento para capturar o momento num sample.

nov 28 2019 ∞
mar 5 2020 +