Transgeneridade não é um "quando o gênero de uma pessoa e o que vemos dessa pessoa 'divergem'". Quando diz isso, você pressupõe uma convergência entre o gênero (que teria existência apenas enquanto ideia, psicológico portanto) e o corpo (que seria "real", "natural", que existiria no mundo de uma forma específicamente dada e dizível independente da subjetividade humana), ou seja, você está entendendo gênero a partir da concepção idealista de verdade: a verdade como um atributo de enunciados que coincidem com a realidade "nela mesma", a-histórica, anterior à produção humana e à qual as ideias humanas tendem a retornar ou reencontrar, isto é, que justifica e conduz a humanidade teleologicamente. Só que a realidade humana não é um jogo de cartas marcadas, não existe transcendência e não existe uma 'natureza' que, sendo externa àquilo que é dito sobre ela, ainda assim, existe à maneira de um dito. A 'natureza' só existe, ou melhor, só é possível falar dela enquanto uma identidade existente na realidade humana, constantemente redefinida pelas contradições que carrega, ou seja, por aquilo que necessariamente exclui pra que possa fazer sentido. Isso é materialismo dialético.

Qual é a implicação disso no entendimento sobre o que é gênero? Bom, em primeiro lugar, vamos separar algumas coisas, pois um dos maiores problemas no debate sobre gênero é que cada um fala de uma coisa diferente quando fala de gênero, mas ninguém para pra fazer o trabalho do conceito. Podemos falar do gênero enquanto o conceito construído socialmente, enquanto a abstração que tem um papel na maneira como as pessoas se relacionam com o mundo -- portanto, uma entidade ideológica assim como a mercadoria, o dinheiro, etc --. Essa entidade ideológica -- vamos chamá-la de "ideais normativos de gênero" -- é, nesse sentido, um mediador da maneira como o sujeito vai construir uma identidade pra chamar de sua -- veja bem, eu não disse "indivíduo" e sim "sujeito": o sujeito é, por definição, dividido e só existe tensionado na relação que estabelece com a linguagem e com aquilo que, portanto, está "fora" de sua identidade, de seu eu. Isso nos leva à outra definição de gênero: o gênero como essa identidade mesma que o sujeito constrói a partir da história de suas relações com o Outro -- vamos chamar isso de "identidade de gênero". Os ideais normativos de gênero se constituem, no Ocidente, como duas particularidades que se definem em oposição mútua: o feminino e o masculino. É na relação que os sujeitos estabelecem com essas particularidades que eles produzem a própria identidade de gênero, que é singularmente inscrita num universal.

Isso significa que, de um ponto de vista materialista dialético, não é possível falar em uma identidade de gênero "falsa" ou que os ideais normativos de gênero são "falsos". A crítica marxiana à economia política não é simplemente uma questão de mostrar que a mercadoria é "falsa" ou que as relações de troca são "falsas", mas é uma questão de mostrar que a mercadoria existe segundo um modo de produção e que as trocas econômicas pontuais estão sempre inseridas numa lógica de circulação de mercadorias que as abrange. Da mesma forma, a crítica ao machismo não pode ser direcionada a entender como o gênero se conforma ou não à realidade dos fatos, mas como ele é produzido socialmente de um modo historicamente específico e como esse modo engendra dispositivos ao mesmo tempo de subordinação e produção de sujeitos.

  • "O meu entendimento era q genero nao era uma ideia, psicologica, mas atributos e marcas impostas logo ao se nascer, algo bem tangivel msm. E ai as pessoas q destroem ou ressignificam isso, "mudam" digamos assim seriam trans. Dai tiro a conclusao de q algumas pessoas se diriam, digamos, do genero masculino mas seriam vistas pela sociedade como do genero feminino. Soh."

Mas se pessoas trans são aquelas que "destroem ou ressignificam" esses "atributos e marcas impostas logo ao se nascer", então pessoas cis simplesmente receberiam essas marcas sem ressignificá-las, existindo como um mero objeto delas e seguindo-as como uma espécie de programação pré-estabelecida, como uma determinação não-dialética. E isso não é verdade, pois o gênero, assim como a essência humana de que Marx fala nas Teses sobre Feuerbach, "não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na sua realidade," o gênero faz parte do "conjunto das relações sociais."

Então, o que seriam pessoas trans? Tento uma definição que, apesar de não extinguir a conversa, dá conta do aspecto que aqui está em discussão: sujeitos cuja identidade de gênero se constroi de modo a romper tão bruscamente com a continuidade lógica exigida pelos ideais normativos de gênero que escapam à inteligibilidade social que eles permitem e, dessa forma, revelam o estatuto do gênero de construção social, não-natural. E que são, então, subordinadas a dispositivos de marginalização e de exclusão social em favor da manutenção desses ideais normativos. As pessoas cis, por outro lado, estão submetidas a uma outra série de dispositivos sociais que atuam na correção e reiteração constante do gênero, portanto, na produção dessa inteligibilidade.

Uma observação importante que decorre dessa reflexão e que é central pro debate que está sendo desenvolvido aqui: não é desejável uma demarcação estrita entre a transgeneridade e a cisgeneridade; a colocação dos sujeitos sob uma ou sob outra é percebida mais pelos efeitos que têm em suas vidas do que por uma interioridade bem definida. Existem sujeitos cuja condição é a do interstício entre essas duas posições, e reduzi-las a uma ou a outra -- em outras palavras, essa prática escrota que se criou de ficar esmiuçando longamente as particularidades de uma pessoa pra definir se ela é "legitimamente", "verdadeiramente" trans -- é voltar à ideia de identidades fechadas em si mesmas, autônomas, que dão origem a si mesmas. À ideia idealista, portanto.

É preciso pensar modos de organização das demandas políticas e dos movimentos sociais que precindam disso. Ou seja, a pergunta não pode ser: "Uma pessoa com uma "passabilidade" masculina, que se julga cadenogenero neutrox, deveria estar presente em espaços feministas de debate?" (enunciado retirado de um dos maiores grupos de debates de esquerda do Facebook). A pergunta deve ser: como é possível pensar espaços de organização política que dêem conta dessa indeterminação constitutiva da identidade de gênero?

dec 10 2016 ∞
jan 31 2017 +