em "observações sobre o amor de transferência" (1915), freud esboça uma diferença entre o amor 'autêntico' e o amor 'insincero': "Enfatizamos acima de tudo a inconfundível participação da resistência nesse “amor”. Uma verdadeira paixão tornaria a paciente maleável e aumentaria a sua disposição a resolver os problemas do seu caso, simplesmente porque o homem que ama o exige. Assim ela escolheria de bom grado o caminho que leva a completar o tratamento, a fim de se tornar valiosa para o médico e preparar a realidade em que a inclinação amorosa poderia ter seu lugar. Em vez disso a paciente se mostra obstinada e desobediente, perde todo o interesse na terapia e claramente não respeita as bem fundamentadas convicções do analista. Ela produz, assim, uma resistência sob a forma aparente de paixão, e além disso não se incomoda em levá-lo ao que as pessoas chamam de “beco sem saída”. Pois se ele a recusar — como requerem o dever e o entendimento —, ela poderá se fazer de desprezada e, por vingança e por raiva, furtar-se à cura nas mãos dele, como faz agora graças à suposta paixão. Um segundo argumento contra a autenticidade desse amor consiste em que ele não possui uma só característica nova, oriunda da situação presente, mas se constitui inteiramente de repetições e decalques de reações anteriores, infantis inclusive. Nós nos dispomos a provar isso mediante uma análise detalhada do comportamento amoroso da paciente." (p. 167, cia das letras vol. X) o primeiro argumento esboça a diferença argumentando que, na paixão "autêntica" a resistência deveria ser eliminada, o que se explica segundo o esquema de psicologia das massas pelo 'enamoramento' e seus efeitos comparáveis aos da hipnose; a resistência, se existe, indica pelo menos que não houve um enamoramento completo, pois ainda há um ideal de eu separado do objeto e capaz de resistir a sua demanda. mas, no segundo argumento, ele supõe um amor autêntico cujo traço essencial seria sua novidade em relação aos amores passados.
em seu texto a psicanálise revisada, adorno cita o movimento seguinte desse texto de freud: "Acho que dissemos a verdade à paciente, mas não ela inteira, sem consideração pelos resultados. De nossos dois argumentos, o primeiro é o mais forte. O papel da resistência no amor de transferência é indiscutível e bastante considerável. Mas a resistência não criou esse amor; depara com ele, serve-se dele e exagera suas manifestações. A autenticidade do fenômeno não é comprometida pela resistência. Já o nosso segundo argumento é bem mais fraco; é verdade que essa paixão consiste de novas edições de velhos traços e repete reações infantis. Mas este é o caráter essencial de toda paixão. Não existe paixão que não repita modelos infantis. É justamente o condicionamento infantil que lhe confere o caráter compulsivo que lembra o patológico." adorno, então, responde: "Se Freud denomina infantil o apaixonamento, sem diferenciar seus traços libidinais primários dos produzidos por repressão, então os revisionistas também podem repreender como patológico o amor que é incompatível com o princípio de realidade." (ADORNO, p. 69, ed. unesp) a que 'traços libidinais primários', não produzidos pela repressão, estaria ele se referindo? se, como ele defende no texto, o eu não está lá desde o princípio, mas sua própria constituição deve ser objeto de explicação, devemos recorrer à formação do eu. de acordo com a concepção freudiana, "a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa" é a identificação chamada primária, que freud diz ser ao pai, enquanto no comentário sobre esquema ótico no seminário 8 lacan entende como sendo ao grande Outro que fornece um "signo de assentimento". esse traço só poderia ser, então, o 'traço unário' tomado do outro como ideal de eu.
no aforismo 49 da minima moralia, em que discute a questão da irreversibilidade do tempo abstrato como critério moral objetivo, ele diz: "Se as pessoas não mais fossem propriedades também não poderiam ser permutadas. A verdadeira afeição seria aquela que se dirige especificamente ao outro, se liga a traços amados e não ao fascínio da personalidade, essa reflexão da propriedade. O específico não é exclusivo: falta-lhe o impulso para a totalidade. Mas em outro sentido é sim exclusivo: quando não proíbe propriamente, mas consoante seu próprio conceito nem mesmo permite que se apresente a substituição da experiência que a ele adere de modo inseparável. A proteção do inteiramente específico consiste em que ele não pode ser repetido, e por isso mesmo tolera o outro." (MM, p. 75) aqui esse traço aparece como um irrepetível.
-- lacan diz:
"Os professores, a propósito da dúvida cartesiana, esforçam-se muito para sublinhar que ela é metódica. Eles fazem ques tão disso. Metódico, isto quer dizer dúvida a frio. [...] A dúvida de Descartes, sublinhei, e não sou o primeiro a fazê-lo, é, certamente, uma dúvida muito diferente da dúvida cética. Frente à dúvida de Descartes, a dúvida cética se desdobra inteiramente no nível da questão do real. Contrariamente ao que se acredita, ela está longe de colocá-lo em causa; ela o lembra, ela aí reúne seu mundo, e tal cético, cujo discurso inteiro nos reduz a só sustentar como válida a sensação, não a faz, por isso, desvanecer-se em absoluto; ele nos diz que a sensação tem mais peso, que ela é mais real do que tudo que podemos construir a seu respeito. Esta dúvida cética tem seu lugar, vocês sabem, na Fenomenologia do Espírito de Hegel. É um tempo dessa pesquisa, dessa busca na qual se engajou em relação a si mesmo o saber, este saber que não é senão um não saber ainda [savoir pas encore], logo, é por este fato, um já saber. Não é em absolutamente nada disto que Descartes se empenha. Descartes não tem, em nenhuma parte seu lugar na Fenomenologia do Espírito, ele coloca em questão o próprio sujeito e, apesar de não sabê-lo, é do sujeito suposto saber que se trata; não é se reconhecer naquilo de que o espírito é capaz que se trata, para nós; é do sujeito ele mesmo como ato inaugural, que é a questão. É, creio, isto que constitui o prestígio, que dá o valor de fascinação, que produz o efeito de virada, que teve efetivamente na história este desenvolvimento insensato de Descartes, é que ela tem todas as características do que chamamos, em nosso vocabulário, de uma passagem ao ato."
o que a dúvida cartesiana coloca em questão é a unaridade do eu, a possibilidade de contar algo como um, que é pressuposta ao início da fenomenologia. a primeira figura da consciência, na introdução, é aquela que se dá na oposição entre saber e verdade: saber é o lado determinado da relação, o para-mim; verdade é o lado indeterminado, o em-si. sabemos como hegel prossegue, mas não como ele chega até ai. hegel nunca se coloca a pergunta: como é possível que se constitua um mim para-quem a coisa aparece como já sendo? ora, essa oposição entre saber e verdade pode ser escrita como: $ ◊ a.
como fica a "síntese da apercepção" de kant e o argumento sobre o aleatório e o contingente em meillassoux?
por em questão da unicidade desse para mim é o conteúdo radical das formações do insconsciente: se, com a intenção de abrir a porta, cometo o ato falho de fechá-la, o que está em questão não é a distância entre o em-si da porta e o para-mim, mas o próprio para-mim da porta. quer dizer, esse ato falho aponta para a coexistência entre dois "para-mim", um 'mim' para o qual minha intenção era abrir a porta e um outro para o qual minha intenção era fechá-la. claro, existe a maneira de interpretar o problema que lacan tacitamente atribui ao existencialismo e que supõe que, previamente ao ato de fechar a porta, haveria um primeiro ato de má-fé pelo qual eu me convenci de que a minha intenção era abrir a porta quando minha intenção original era fechá-la; com isso, a unidade do eu é preservada, apenas postulando uma dobra interna. mas é aqui que entra o problema da estrutura puramente significante do trabalho do inconsciente, que não é reconstrutível a uma intenção originária. frege (the foundations of arithmetic, p. 61) diz: "The concept has a power of collecting together far superior to the unifying power of synthetic apperception. By means of the latter it would not be possible to join the inhabitants of Germany together into a whole; but we can certainly bring them all under the concept 'inhabitant of Germany' and number them." contra frege, russell mostrou com seu paradoxo que não é possível operar o fundamento desse um por uma definição intensiva como "habitantes da alemanha", que esse um deve aparecer em estado bruto de uma vez só, "absolutamente despersonalizado", sendo um apenas porque é contado como um, sem qualquer referência à constituição interna do objeto, ao seu conteúdo. é com referência a esse um, a esse traço unário, que se opera a identificação simbólica.