• Mas parece que um nobre e hábil espírito se insensibiliza mais rápido do que contra o áspero e amargo estímulo do conhecimento; e é certo que a nostálgica, conscienciosíssima solidez significa a superficialidade do jovem em comparação com a profunda decisão do homem que se tornou mestre, desmentindo o saber, recusando-o, passando por cima, de cabeça erguida desde que seja apto a tolher, desencorajar, desonrar no mínimo a vontade, o ato, o sentimento e mesmo a paixão.
  • Porém, resolução moral além do saber, do reconhecimento dissoluto e inibitivo — não significa, por outro lado, uma simplificação, uma singeleza moral do mundo e da alma, portanto, também um revigorar para o mal, o proibido, para o moralmente impossível?
  • Uma evolução é um destino; e por que esta não devia transcorrer diferentemente, acompanhada pelo interesse e confiança da massa, por uma larga publicidade, daquela que se desenrola sem o brilho e os compromissos da fama? Só o eterno ciganismo a acha monótona e é inclinado a escarnecer quando um grande talento se emancipa do estado de boneco libertino, se habitua a perceber expressivamente a dignidade do espírito e adota as etiquetas de uma solidão, que era sem conselhos, cheia de duras e independentes lutas e pesares, e que alcançava poder e honra entre os homens. Ademais, quanto jogo, obstinação, deleite está na criação própria do talento!
  • Também do lado pessoal a arte afinal é uma vida elevada. Ela torna mais profundamente feliz, ela consome mais ràpidamente. Ela sulca no rosto de seu criado os rastos de aventuras imaginárias e espirituais e ela produz, com o decorrer do tempo, mesmo em monástico silêncio de existência exterior, um ânimo, uma supersensibilidade, um cansaço e uma curiosidade dos nervos que uma vida cheia de dissolutas paixões e prazeres quase não consegue produzir
  • Mas no espaço vazio sem laços que nos prendam também falta ao nosso espírito a medida do tempo e nós crepusculamos na imensidão.
  • As observações e os acontecimentos do solitário calado são ao mesmo tempo mais difusos e mais penetrantes que os do sociável, seus pensamentos são mais pesados, estranhos e nunca sem um traço de tristeza.
  • Amava o mar por motivos fortes: por um anseio pelo silêncio do artista que trabalha muito e que, perante a exigente multiplicidade das aparições, deseja acolher-se no seio do simples e imenso; por uma tendência proibida, oposta à sua tarefa e, justamente por isso, tentadora; para o desligado, desmedido, eterno, para o nada. Descansar ao lado do perfeito é o anseio daquele que se empenha pelo esmerado; e o nada não é uma forma do perfeito?
  • Aschenbach não amava o prazer. Quando e onde fosse preciso festejar, cuidar do repouso, passar um dia em folguedos, desejava logo — e assim fora principalmente quando mais moço — com inquietação e contrariedade voltar para a árdua labuta, para o serviço sagrado e sóbrio da vida cotidiana. Só este lugar o enfeitiçava, afrouxava seu querer, fazia-o feliz.
  • A severa e pura vontade, porém, que em ação obscura conseguira trazer à luz esta obra divina — não era conhecida e familiar a ele, o artista? Não obrava também dentro dele quando, cheio de sóbria paixão, libertava das massas marmóreas da língua a esguia forma que divisara no espírito e que apresentava aos homens como estátua e espelho de beleza espiritual? Estátua e espelho! Seus olhos envolveram a nobre figura à beira do azul e, em êxtase entusiasta, ele acreditou. com esse olhar, compreender o belo em si, a forma como pensamento divino, a única e pura perfeição que vive no espírito e da qual uma imagem e alegoria humana aqui estava erguida, leve e graciosa, para adoração. Isto era a embriaguez; e, sem hesitação, avaro mesmo, o artista envelhecido recebeu-a calorosamente. Seu cérebro girava, sua cultura entrou em efervescência, sua mente levantou pensamentos transmitidos desde sua juventude e que até então não tinham sido avivados pelo próprio fogo. Não estava escrito que o sol desviava nossa atenção do intelectual para coisas sensuais? Dizem que ele atordoa e encanta o intelecto e a memória de tal maneira, que a alma, de alegria, esquece completamente sua verdadeira condição e, com espantada admiração, fica.presa no mais belo dos objetos banhados pelo sol: e só com o auxílio de um corpo ela consegue elevar-se para uma contemplação ainda mais alta. Cupido, deveras, imitou os matemáticos, os quais apresentam às crianças incapazes figuras concretas de formas puras. Assim também o deus, para nos fazer visível o espiritual, gostava de servir-se do corpo e das cores da juventude humana, que, como instrumento de lembrança, enfeitava com todo o reflexo da beleza, e, na contemplação dela, nos certamente nos incendiávamos em dor e esperança. Assim pensava o entusiasmado; assim era capaz de sentir. E, do êxtase do mar e do brilho do sol, formou-se no seu íntimo um lindo quadro. Era o velho plátano perto dos muros de Atenas — era aquele sagrado sombreado lugar, cheio do perfume das flores do agnocasto, enfeitado por ex-votos e dádivas piedosas em homenagem as ninfas e ao Aqueloo. Completamente límpido, o rio caia aos pés da árvore de hastes largas, sobre calhaus lisos; as cigarras cantavam. Mas, sobre o gramado, que tinha uma inclinação ligeira de modo a poder a cabeça ficar mais alta ao deitar, estavam estendidas duas pessoas, abrigadas do calor do dia: uma idosa e uma jovem, uma feia e uma bela, o sábio ao lado do gentil. E, com cortesias e angariantes gracejos espirituais, Sócrates esclarecia Fédon sobre o anseio e a virtude. Falava-lhe sobre o susto ardente que o sensível sofre quando seus olhos vêem uma alegoria da beleza eterna; falava dos desejos do ignóbil e mau que não pode pensar na beleza quando vê sua imagem, e não é capaz de veneração; falava do medo sagrado que domina o nobre, quando lhe aparece um rosto divino, um corpo perfeito, como então treme e fica fora de si e quase não se atreve a olhar e adora aquele que tem a beleza. Ofertar-lhe-ia mesmo sacrifícios, como a uma estátua, se não temesse parecer louco aos homens. Pois a beleza, meu Fédon, só ela é gentil e visível ao mesmo tempo: ela é, preste bem atenção! a única forma do espiritual que podemos receber sensualmente, suportar sensualmente. Ou o que seria de nós se o divino, a razão, a virtude e a verdade se quisessem apresentar-se-nos sensualmente! Não pereceríamos e queimaríamos de amor como Semele perante Zeus? Assim, a beleza é o caminho do homem sensível ao espírito — só um caminho, um meio somente, pequeno Fédon... E depois expressou o mais sutil, o astuto cortejador: pois o amante é mais divino que o amado, porque naquele está o deus, e no outro não-pensamento tão carinhoso e irônico que talvez jamais tenha sido pensado e do qual nasce toda a travessura e a mais secreta voluptuosidade do anseio. A felicidade do literato é o pensamento que é todo sentimento; é o sentimento que consegue tornar-se todo pensamento. Um pensamento palpitante como este, um sentimento tão exato, pertencia e obedecia ao solitário, naquela ocasião: isto e, que a natureza estremece de prazer quando o espírito se curva em adoração perante a beleza. Repentinamente desejou escrever. Na verdade, Eros ama a ociosidade, assim dizem, e só é criado para isto. Mas neste ponto da crise a exaltação do atordoado era dirigida à produção. Quase indiferente o motivo. Uma pergunta, uma incitação sobre um certo grande e ardente problema da cultura e do gosto, deixando-se sentir com definição, tinha sido projetada ao mundo espiritual e chegara até o viajante. O assunto lhe era familiar, lhe era experiência; seu desejo de deixá-lo acender-se na luz de sua palavra tornou-se irresistível. E, na verdade, seu anseio era trabalhar na presença de Tadzio, e, escrevendo, adotar a figura do menino como modelo, deixar seu estilo seguir as linhas deste corpo que lhe parecia divino, levar sua beleza para o espiritual, como outrora a águia carregara o pastor troiano para o éter. Nunca sentira mais doce o prazer da palavra, nunca soubera que Eros estava assim na palavra, como nas horas perigosas e deliciosas, durante as quais, sentado em frente à rude mesa sob o toldo, na presença de seu ídolo e a música de sua voz nos ouvidos, formava sua pequena dissertação, de acordo com a beleza de Tadzio — aquela página e meia de escolhida prosa, cuja integridade, nobreza e ondulante tensão de sentimento dentro em pouco exaltaria a admiração de muitos. Por certo é bom que o mundo só conheça as belas obras sem conhecer suas origens e condições de formação, pois o conhecimento das fontes que serviram de inspiração ao artista muitas vezes o desconcertaria, desalentaria e assim anularia os efeitos do que é excelente. Estranhas horas! Estranha fadiga enervante! Estranha comunicação criadora do espírito com um corpo! Quando Aschenbach guardou seu trabalho e deixou a praia, sentiu-se esgotado, desconcertado mesmo, como se a sua consciência lhe fizesse queixas depois de uma digressão.
  • Quem decifra o caráter e o cunho do artista! Quem entende a profunda fusão instintiva de disciplina e devassidão na qual se baseia! Pois não conseguir desejar a sanável desilusão é devassidão.
  • Seu sono era prófugo; os deliciosos dias uniformes eram interrompidos por noites curtas, cheias de feliz desassossego. Na verdade, recolhia-se cedo, pois às 9 horas, quando Tadzio desaparecia da cena, o dia lhe parecia findo. Mas, ao primeiro clarão do dia, era acordado por um delicado e penetrante susto: seu coração lembrava-se de sua aventura, não suportava ficar deitado por mais tempo, levantava-se e, envolvido num agasalho leve, sentava-se em frente à janela aberta para esperar o nascimento do sol. O maravilhoso acontecimento enchia de veneração sua alma enlevada pelo sono. Ainda o céu, a terra e o mar estavam envolvidos na fantástica, vítrea palidez da madrugada; ainda pairava uma estrela apagada no espaço. Mas vinha um sopro, uma notícia alada de residências inatingíveis, de que Eros se erguia do lado de seu esposo, e então aparecia aquele primeiro doce enrubescer da faixa mais distante do céu e do mar, anunciando o sensualizar da criação. A deusa se aproximava, a raptora de adolescentes, que arrebatara Ceix e Céfalo e, a despeito da inveja de todos os olímpicos, gozava o amor do belo órion. Um espalhar de rosas começou à beira do mundo, um indizivelmente belo brilhar e florir, nuvens infantis, transfiguradas, translúcidas, oscilavam como servis gênios no perfume róseo, azulado. Púrpura caiu sobre o mar, que parecia flutuá-la em ondas para a frente; lanças douradas apontavam de baixo para as alturas do céu; o brilho tornou-se brasa; silenciosamente, com supremo poder divino, brasa, ardor e labaredas chamejantes rolavam para cima e com cascos arrebatadores os cavalos sacros do irmão subiam pelo universo. Iluminado pelo esplendor do deus, o solitário acordado fechava os olhos e deixava que suas pálpebras fossem beijadas pela glória. Velhos sentimentos, antigos deliciosos impulsos do coração que, no severo trabalho de sua vida, haviam morrido — reconheceu-os com um sorriso desconcertado e admirado. Pensava, sonhava; vagarosamente seus lábios formaram um nome, e, ainda sorrindo, com o rosto erguido, as mãos entrelaçadas no colo, adormeceu de novo, sentado na cadeira.
  • Nada é mais estranho, mais melindroso que a relação de pessoas que só se conhecem de vista — que diàriamente, em cada hora mesmo, se encontram, se observam; são obrigadas a manter a aparência de indiferente estranheza, sem cumprimento, sem palavra, pela ética ou capricho pessoal. Entre eles há inquietação e curiosidade sobreexcitada, a histeria de uma insatisfeita e artificialmente oprimida necessidade de conhecimento e intercâmbio, e principalmente também uma espécie de respeitoso interesse. Pois o homem ama e respeita o homem enquanto não consegue julgá-lo; e o anseio é o produto de um conhecimento falho.
  • Admoestações estranhamente revoltadas e carinhosas desprendiam-se dele: “Não deve sorrir assim! ouça, não se deve sorrir assim para ninguém!” Atirou-se sobre um banco, respirou indignado o perfume noturno das plantas. E, inclinado para trás, de braços pendentes, dominado e sentindo-se percorrido por arrepios, murmurou a eterna fórmula do anseio — aqui impossível, absurdo, abjeto, ridículo e, no entanto, sagrado, digno mesmo, ainda aqui: “Eu te amo!”
  • “Devem ocultar!”, pensou Aschenbach exaltado, jogando os jornais de volta sobre a mesa. “Devem ocultar isto!” Mas ao mesmo tempo seu coração se encheu de satisfação pela aventura em que o mundo exterior queria cair! Pois a paixão, como o crime, não se adapta à ordem segura e ao bem-estar cotidiano, e todo afrouxar da estrutura civil, toda confusão e tribulação do mundo lhes é bem-vinda, porque estas situações podem trazer uma esperança incerta de nelas encontrarem seu proveito. As ocorrências camufladas pelas autoridades, nas sujas ruelas de Veneza, provocaram uma satisfação obscura em Aschenbach — esse grave segredo da cidade que se fundia com seu próprio segredo e cuja preservação lhe dizia tanto. Pois ao apaixonado só preocupava que Tadzio talvez pudesse partir, e reconheceu, assustado, que não saberia mais viver, se tal acontecesse.
  • Cabeça e coração estavam embriagados e seus passos seguiam as instruções do demônio, que sente prazer em pisar com seu pé a inteligência e a dignidade humanas.
  • Que lhe diziam ainda arte e virtude comparadas às vantagens do caos?
sep 28 2018 ∞
sep 28 2018 +