• "A amizade é menos simples. Sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meios de nos livrarmos dela; temos de enfrentá-la. Sobretudo não acredite que seus amigos lhe telefonarão todas as noites, como deviam, para saber se não é precisamente essa a noite em que decidiu suicidar-se ou, mais simplesmente, se não tem necessidade de companhia, se não está com vontade de sair. Oh, não, se telefonarem, pode ficar certo, será na noite em que você já não está só e em que a vida parece bela. Quanto ao suicídio, de preferência eles o levariam a isso, em virtude do que deve a si próprio, segundo eles. Que Deus nos livre, caro senhor, de sermos colocados em um plano muito elevado por nossos amigos!"
  • "Sabe, ouvi falar de um homem cujo amigo haviam prendido e que todas as noites se deitava no chão de seu quarto para não gozar de um conforto do qual havia sido privado aquele que ele amava. Quem, meu caro senhor, quem se deitará no chão por nós? Se eu mesmo seria capaz disso? Escute, gostaria de ser, sê-lo-ei. Sim, seremos todos capazes disso, um dia, e representará a salvação. Mas não é fácil, porque a amizade é distraída ou, pelo menos, impotente. O que ela quer não pode. Talvez, afinal, não o queira bastante?"
  • "Mas sabe por que somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Em relação a eles, já não há obrigações. Deixam-nos livres, podemos dispor de nosso tempo, encaixar a homenagem entre o coquetel e uma doce amante: em resumo, nas horas vagas. Se nos impusessem algo, seria a memória, e nós temos a memória curta. Não, é o morto recente que nós amamos em nossos amigos, o morto doloroso, nossa emoção, enfim, nós mesmos!"
  • "Uma mulher que me perseguia, em vão, teve o bom gosto de morrer jovem. Que espaço imediato em meu coração! E quando, ainda por cima, se trata de um suicídio! Senhor, que deliciosa confusão! O telefone toca, o coração transborda, e as frases voluntariamente breves, mas carregadas de subentendidos, a dor controlada, e até mesmo, sim, um pouco de auto-acusação!"
  • "É assim o homem, caro senhor, com duas faces: não consegue amar sem se amar."
  • "Conheci um homem que deu vinte anos de sua vida a uma desmiolada, por quem tudo sacrificou, as amizades, o trabalho, a própria decência de sua vida, para uma noite reconhecer que nunca a havia amado. Ele se entediava, nada mais. Entediava-se como a maior parte das pessoas. Havia construído, peça por peça, uma vida de complicações e de dramas. É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!"
  • "É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode opor-se outra: nunca mais se acabaria. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreender isso. Por exemplo, deve ter notado, a nossa velha Europa filósofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingênuos: 'Eu penso assim. Quais são suas objeções?' Tornamo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado. 'Esta é a verdade', dizemos. 'Podem até discuti-la, isso não nos interessa. Mas, dentro de alguns anos, lá estará a polícia para lhes mostrar que tem razão.'"
  • "Da mesma forma, negava-me sempre a comer nos restaurantes chineses. Por quê? Porque os asiáticos, quando se calam, e diante dos brancos, têm sempre um ar de desprezo. Naturalmente, eles conservam este ar enquanto servem! Como saborear, então, o frango laqueado? Como, sobretudo, ao vê-los, pensar que se tem razão?"
  • "Os homens só se convencem de nossas razões, de nossa sinceridade e da gravidade de nossos sofrimentos com a nossa morte. Enquanto estivermos vivos, nosso caso é duvidoso, só temos direito a seu ceticismo. Se houvesse, então, uma única certeza de podermos gozar o espetáculo, valeria a pena provar-lhes o que eles não querem crer e deixá-los assombrados. Mas uma pessoa se mata, e que importa se eles acreditam ou não? Não estamos presentes para colher os frutos de seu espanto e de sua contrição, aliás efêmera: assistir, enfim, segundo o sonho de cada homem, ao próprio funeral. Para deixar de ser duvidoso, é preciso, pura e simplesmente, deixar de ser."
  • "Sem contar que nos arriscaríamos a ouvir as razões que dariam para o nosso gesto. No que me diz respeito, já consigo ouvi-los: "Matou-se porque não pôde suportar que ..." Ah! caro amigo, como os homens são pobres de inventiva! Julgam sempre que nos suicidamos por uma razão. Mas podemos muito bem suicidar-nos por duas razões. Não, isso não lhes entra na cabeça. Para que serve, então, morrer voluntariamente, sacrificar-se à ideia que se quer dar de si mesmo? Uma vez morto, eles se aproveitarão disso para atribuir ao gesto motivos idiotas ou vulgares. Os mártires, caro amigo, têm de escolher entre serem esquecidos, ridicularizados ou usados. Quanto a serem compreendidos,isso, nunca."
  • "A partir do momento em que temi que houvesse em mim qualquer coisa a ser julgada, compreendi, em suma, que havia neles uma vocação irresistível para julgar."
  • "Sobretudo, não acredite em seus amigos, quando lhe pedirem que seja sincero com eles. Só anseiam que alguém os mantenha no bom conceito que fazem de si próprios, ao lhes fornecer uma certeza suplementar, que extrairão de sua promessa de sinceridade. Como poderia a sinceridade ser uma condição da amizade? O gosto pela verdade a qualquer preço é uma paixão que nada poupa e a que nada resiste."
  • "Raramente nos abrimos com quem é melhor do que nós. De preferência, fugimos a esse convívio. Na maioria das vezes, pelo contrário, confessamo-nos aos que se parecem conosco e que partilham de nossas fraquezas. Não desejamos, pois, nos corrigir; nem melhorar: seria preciso, antes de tudo, que fôssemos julgados fracos. Apenas desejamos ser lastimados e encorajados em nosso caminho. Em suma, desejaríamos ao mesmo tempo deixar de ser culpados e não fazer esforço algum para nos purificarmos. Sem cinismo suficiente e sem virtude suficiente."
  • "Chegou um dia em que não aguentei mais. Minha primeira reação foi confusa. Já que era mentiroso, iria manifestá-lo e atirar minha duplicidade na cara de todos aqueles imbecis, antes mesmo que a descobrissem. Intimado pela verdade, responderia ao desafio. Para me precaver contra o riso, imaginei então lançar-me à zombaria geral. Em suma, tratava-se ainda de fugir ao julgamento. Queria colocar do meu lado os que riam ou, pelo menos, colocar-me ao lado deles. Pensava, por exemplo, em dar empurrões em cegos na rua, e, pela alegria surda e imprevista que isso me proporcionava, descobria até que ponto uma parte de minha alma os detestava: planejava furar os pneus das cadeiras de rodas dos aleijados, e gritar 'Trabalha, vagabundo' debaixo dos andaimes onde estavam os operários, esbofetear bebês no metrô. Sonhava com isso tudo e nada fiz ou, se fiz alguma coisa parecida, esqueci. O certo é que a própria palavra justiça me deixava fora de mim. Eu continuava, forçosamente, a utilizá-la em minhas defesas. Mas vingava-me ao amaldiçoar publicamente o espírito de humanidade; anunciava a publicação de um manifesto denunciando a opressão que os oprimidos faziam pesar sobre os homens de bem. Certo dia em que eu comia lagosta no terraço de um restaurante e um mendigo me importunava, chamei o dono para expulsá-lo e aplaudi com estardalhaço as palavras desse justiceiro: 'Você está incomodando', dizia ele. 'Enfim, coloque-se no lugar dessas senhoras e desses senhores!' Eu dizia, também, para quem quisesse ouvir, como lamentava não ser mais possível agir como um proprietário russo, cujo caráter admirava: ele mandava chicotear, da mesma maneira, os camponeses que o saudavam e os que não o saudavam, para castigar uma audácia que ele julgava uma afronta igual nos dois casos."
  • "Desesperançado do amor e da castidade, compreendi, enfim, que restava a libertinagem, que substitui muito bem o amor; faz calar os risos, restabelece o silêncio e, sobretudo, confere a imortalidade. Com certo grau de embriaguez lúcida, deitado, alta noite, entre duas moças, já despido do desejo, a esperança não é mais uma tortura, compreenda, o espírito reina sobre todos os tempos, a dor de viver fica para sempre afastada."
  • "Felizmente, o prazer excessivo debilita tanto a imaginação quanto o julgamento. Então, o sofrimento dorme junto com a virilidade e tanto quanto ela. Pelas mesmas razões, os adolescentes perdem, com a primeira amante, sua inquietação metafísica, e certos casamentos, que são uma libertinagem burocratizada, tornam-se, ao mesmo tempo, os monótonos coveiros da audácia e da imaginação."
  • "Há sempre razões para matar um homem. Inversamente, é impossível justificar que viva. É por isso que o crime encontra sempre advogados, e a inocência, apenas às vezes."
  • "Portanto, meus pensamentos são perpassados por uma corrente contínua de 'auto-referência' da qual, em geral, não tenho nenhum indício, mas que se denuncia através desses exemplos de esquecimentos de nomes. É como se eu estivesse obrigado a comparar comigo tudo o que ouço a respeito de outra pessoas; como se meus complexos pessoais fossem postos em alerta todas as vezes que tenho notícia de outra pessoa. É impossível que isso seja uma peculiaridade individual minha; deve conter, antes, uma indicação da maneira como entendemos o 'outro' em geral. Tenho razões para supor que, nesse aspecto, as outras pessoas sejam bem parecidas comigo.
  • "Mas o censor é a propaganda do que proscreve. Também a ordem do mundo é ambígua."
  • "Afinal, é isso mesmo o que sou, refugiado num deserto de pedras, de brumas e de águas pútridas, profeta vazio para tempos medíocres, Elias sem Messias, cheio de febre e de álcool, encostado nesta porta bolorenta, de dedo erguido para um céu baixo, cobrindo de imprecações homens sem lei, que não conseguem suportar julgamento algum."
  • "A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto."
  • "O grande problema, no campo, era a distribuição de água. Haviam-se formado outros grupos, políticos e religiosos, e cada um favorecia seus colegas. Fui, assim, levado a favorecer os meus, o que já era uma pequena concessão. Mesmo entre nós, não consegui manter uma igualdade perfeita. Segundo o estado de meus colegas, ou os trabalhos que tinham a fazer, eu beneficiava este ou aquele. Tais distinções conduzem longe, acredite. Mas, decididamente, estou cansado, e não sinto mais vontade de pensar naquele tempo. Digamos que completei o circuito no dia em que bebi a água de um colega agonizante. Não, não, não era Duguesclin, ele já havia morrido, creio eu, ele se privava demais. E, depois, se estivesse lá, por amor a ele, eu teria resistido mais tempo, porque o amava, sim, amava-o, pelo menos é o que me parece. Mas bebi a água, isso é verdade, persuadindo-me de que os outros 95tinham necessidade de mim, mais do que daquele que, de toda maneira, ia morrer, e que eu devia me preservar para eles. É assim, meu caro, que nascem os impérios e as igrejas, sob o sol da morte."
  • "A propósito, queira abrir esse armário, por favor. Este quadro, sim, olhe para ele. Não o reconhece? São Os Juízes íntegros. Não está espantado? Sua cultura teria lacunas, então? Se lia jornais, no entanto, lembra-se do roubo, em 1934, em Gand, na catedral de Saint-Bavon, de um dos painéis do famoso retábulo de Van Eyck, O Cordeiro místico. Esse painel se chamava Os Juízes íntegros. Representava juízes a cavalo, que vinham adorar o animal sagrado. Substituíram-no por uma cópia excelente, porque o original nunca foi encontrado. Pois bem, aqui está ele. Não, não tenho nada a ver com isso. Um assíduo frequentador do Mexico-City, que o senhor viu de relance na outra noite, vendeu-o por uma garrafa ao gorila, em uma noite de bebedeira. Primeiro, aconselhei nosso amigo a pendurá-lo num bom lugar e por muito tempo, enquanto o procuravam no mundo inteiro, nossos devotos juízes pontificaram no Mexico-City, acima dos bêbados e dos proxenetas. Depois, o gorila, a meu pedido, deixou-o aqui, em consignação. Relutou um pouco em fazê-lo, mas ficou com medo quando lhe expliquei o assunto. Desde então, esses estimados magistrados são minha única companhia. Lá, acima do balcão, o senhor viu que vazio eles deixaram. Por que não restituí o painel? Ah! Ah! Meu amigo tem reflexos de polícia! Pois bem, vou responder-lhe como o faria ao juiz de instrução criminal se por acaso alguém pudesse, enfim, se dar conta de que este quadro acabou no meu quarto. Primeiro, porque não é meu, mas do dono do Mexico-City, que o merece tanto quanto o bispo de Gand. Em segundo lugar, porque, dentre os que desfilam diante de O Cordeiro místico, ninguém saberia distinguir a cópia do original, e, em consequência, ninguém foi lesado por minha culpa. Em terceiro lugar, porque, dessa maneira, eu domino. Juízes falsos são expostos à admiração do mundo e eu sou o único a conhecer os verdadeiros. Em quarto lugar, porque tenho, assim, uma possibilidade de ser enviado para a prisão, ideia sedutora, de certo modo. Em quinto lugar, porque esses juízes vão ao encontro do Cordeiro, e não há cordeiro, nem inocência, e, em consequência, o hábil gatuno que roubou o painel era um instrumento da justiça desconhecida, que convém não contrariar. Enfim, porque, dessa maneira, estamos dentro da ordem. Uma vez a justiça definitivamente separada da inocência, esta na cruz, aquela no armário, tenho o campo livre para trabalhar segundo minhas convicções."
  • "Em filosofia como em política, eu sou, portanto, a favor de qualquer teoria que recuse a inocência ao homem, e a favor de toda prática que o trate como culpado. Tem em mim, meu caro, um partidário esclarecido da servidão. Sem ela, a bem dizer, não há solução definitiva. Logo compreendi isso."
  • "Antigamente, só tinha liberdade na boca. No café-da-manhã, eu a passava em minhas torradas, mastigava-a durante todo o dia, levava ao mundo um hálito deliciosamente refrescado pela liberdade. Eu atirava esta palavra-mestra a quem quer que me contradissesse, eu a tinha colocado a serviço dos meus desejos e do meu poder. Murmurava-a na cama, ao ouvido adormecido de minhas companheiras, e era com sua ajuda que eu me descartava delas. Eu a deixava escorregar... Oh!, eu me excito e perco a noção de dimensão. Afinal, aconteceu de eu fazer da liberdade um uso mais desinteressado e até mesmo, avalie minha ingenuidade, defendê-la duas ou três vezes, sem chegar, é bem verdade, a morrer por ela, mas correndo alguns riscos. É preciso me perdoar essas imprudências; eu não sabia o que estava fazendo. Não sabia que a liberdade não é uma recompensa, nem uma condecoração que se comemora com champanhe. Tampouco, aliás, um presente, uma caixa de chocolates de dar água na boca. Oh, não, é um encargo, pelo contrário, é uma corrida de fundo, bem solitária, bem extenuante. Nada de champanhe, nada de amigos que ergam sua taça, olhando-nos com ternura. Sozinhos numa sala sombria, sozinhos no banco dos réus, perante os juízes, e sozinhos para decidir perante nós mesmos ou perante o julgamento dos outros. No final de toda liberdade, há uma sentença; eis por que a liberdade é pesada demais, sobretudo quando se sofre de febre, ou nos sentimos mal, ou não amamos ninguém."
  • "Ah! Meu caro, para quem está só, sem Deus e sem senhor, o peso dos dias é terrível. É preciso, portanto, escolher um senhor, já que Deus não está mais na moda. Esta palavra, aliás, não tem mais sentido; não merece que nos arrisquemos a chocar alguém. Olhe, nossos moralistas, tão sérios, amando o próximo e tudo, só os separa, em suma, do estado de cristão o fato de não pregarem nas igrejas. Que é que os impede, em sua opinião, de se converterem?"
  • "Pois bem, eis a brilhante ideia. Descobri que, enquanto esperamos a vinda dos senhores e de seus bastões, deveríamos, como Copérnico, inverter o raciocínio para triunfar. Já que não podíamos condenar os outros sem imediatamente nos julgarmos, seria preciso nos humilharmos para termos o direito de julgar os outros. Já que todo juiz acaba um dia por ser penitente, seria preciso enveredar em sentido inverso e exercer o ofício de penitente, para poder acabar como juiz."
  • "O essencial é poder permitir-se tudo, mesmo que seja preciso proclamar, de vez em quando, em altos brados, a própria indignidade."
  • "Pronuncie o senhor mesmo as palavras que, há anos, não pararam de ressoar em minhas noites e que eu direi, enfim, pela sua boca: "O jovem, atire-se de novo na água, para que eu tenha, pela segunda vez, a oportunidade de nos salvar a ambos!" Pela segunda vez , bem, que imprudência! Imagine, caro colega, que nos levem ao pé da letra? Seria preciso cumprir. Brr...! A água está tão fria! Mas tranquilizemo-nos! É tarde demais, agora, será sempre tarde demais. Felizmente!"
nov 29 2016 ∞
nov 29 2016 +