• "Existe, talvez, uma outra razão que torna para nós tão gratificante formular em termos de repressão as relações do sexo e do poder: é o que se poderia chamar o benefício do locutor. Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura. Daí essa solenidade com que se fala, hoje em dia, do sexo."
  • "Há dezenas de anos que nós só falamos de sexo fazendo pose: consciência de desafiar a ordem estabelecida, tom de voz que demonstra saber que se é subversivo, ardor em conjurar o presente e aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa contribuir. Alguma coisa da ordem da revolta, da liberdade prometida, da proximidade da época de uma nova lei, passa facilmente nesse discurso sobre a opressão do sexo. Certas velhas funções tradicionais da profecia nele se encontram reativadas. Para amanhã o bom sexo."
  • "Afinal de contas, somos a única civilização em que certos prepostos recebem retribuição para escutar cada qual fazer confidência sobre seu sexo: como se o desejo de falar e o interesse que disso se espera tivessem ultrapassado amplamente as possibilidades da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em locação."
  • "O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo."
  • "O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual porém como natureza singular."
  • "É necessário não esquecer que a categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade constituiu-se no dia em que foi caracterizada — o famoso artigo de Westphal em 1870, sobre as 'sensações sexuais contrárias' pode servir de data natalícia — menos como um tipo de relações sexuais do que como uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de interverter, em si mesmo, o masculino e o feminino."
  • "O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie."
  • "A sociedade moderna é perversa, não a despeito de seu puritanismo ou como reação à sua hipocrisia: é perversa real e diretamente."
  • "O crescimento das perversões não é um tema moralizador que acaso tenha obcecado os espíritos escrupulosos dos vitorianos. É o produto real da interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus [pág. 47] prazeres. Talvez o Ocidente não tenha sido capaz de inventar novos prazeres e, sem dúvida, não descobriu vícios inéditos, mas definiu novas regras no jogo dos poderes e dos prazeres: nele se configurou a fisionomia rígida das perversões."
  • "Tanto a ternura mais desarmada quanto os mais sangrentos poderes têm necessidade de confissões. O homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente. Daí, sem dúvida, a metamorfose na literatura: de um prazer de contar e ouvir, dantes centrado na narrativa heróica ou maravilhosa das 'provas' de bravura ou de santidade, passou-se a uma literatura ordenada em função da tarefa infinita de buscar, no fundo de si mesmo, entre as palavras, uma verdade que a própria forma da confissão acena como sendo o inaccessível. Daí também, essa outra maneira de filosofar: procurar a relação fundamental com a verdade, não simplesmente em si mesmo — em algum saber esquecido ou em um certo vestígio originário — mas no exame de si mesmo que proporciona, através de tantas impressões fugidias, as certezas fundamentais da consciência."
  • "A obrigação da confissão nos é, agora, imposta a partir de tantos pontos diferentes, já está tão profundamente incorporada a nós que não a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage; parece-nos, ao contrário, que a verdade, na região mais secreta de nós próprios, não 'demanda' nada mais que revelar-se; e que, se não chega a isso, é porque é contida à força, porque a violência de um poder pesa sobre ela e, finalmente, só se poderá articular à custa de uma espécie de liberação. A confissão libera, o poder reduz ao silêncio; a verdade não pertence à ordem do poder mas tem um parentesco originário com a liberdade: eis aí alguns temas tradicionais da filosofia que uma "história política da verdade" deveria resolver, mostrando que nem a verdade é livre por natureza nem o erro é servo: que sua produção é inteiramente infiltrada pelas relações de poder. A confissão é um bom exemplo."
  • "Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é, também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se; em fim, um ritual onde a enunciação em si, independentemente de suas consequências externas, produz em quem a articula modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação."
  • "Pela estrutura de poder que lhe [pág. 61] é imanente, o discurso da confissão não poderia vir do alto como na ars erótica, nem pela vontade soberana do mestre, mas de baixo, como uma palavra requisitada, obrigada, rompendo, através de alguma pressão imperiosa, os lacres da reminiscência ou do esquecimento. O que ela supõe como segredo não está ligado ao alto preço do que tem a dizer, nem ao pequeno número dos que dele merecem beneficiar-se, mas à sua obscura familiaridade e à sua abjeção geral. Sua verdade não é garantida pela autoridade altiva do magistério, nem pela tradição por ele transmitida, mas pelo vínculo, pela mútua implicação, essencial ao discurso, entre aquele que fala e aquilo de que fala. Em compensação, a instância de dominação não se encontra do lado do que fala (pois é ele o pressionado) mas do lado de quem escuta e cala; não do lado do que sabe e responde, mas do que interroga e supostamente ignora. E, finalmente, esse discurso de verdade adquire efeito, não em quem o recebe, mas sim naquele de quem é extorquido."
  • "De que maneira se chegou a constituir essa imensa e tradicional extorsão de confissão sexual em formas científicas? 1. Através de uma codificação clínica do "fazer falar": combinar a confissão com o exame, a narração de si mesmo com o desenrolar de um conjunto de sinais e de sintomas decifráveis; o interrogatório cerrado, a hipnose com a evocação das lembranças, as associações livres: eis alguns meios para reinscrever o procedimento da confissão num campo de observações cientificamente aceitáveis. 2. Através do postulado de uma causalidade geral e difusa: o dever de dizer tudo e o poder de interrogar sobre tudo encontrarão sua justificação no princípio de que o sexo é dotado de um poder causal inesgotável e polimorfo. O acontecimento mais discreto na conduta sexual — acidente ou desvio, déficit ou excesso — é, supostamente, capaz de provocar as consequências mais variadas, ao longo de toda a existência; não há doença ou distúrbio para os quais o século XIX não tenha imaginado pelo menos uma parte de etiologia sexual. Dos maus hábitos das crianças às tísicas dos adultos, às aploplexias dos velhos, às doenças nervosas e as degenerescências da raça, a medicina de então teceu toda uma rede de causalidade sexual. É possível que nos pareça fantástico. O princípio do sexo "causa de tudo e de nada" é o inverso teórico de uma exigência técnica: fazer funcionar numa prática de tipo científica os procedimentos de uma confissão que, ao mesmo tempo, deveria ser total, meticulosa e constante. Os perigos ilimitados que o sexo traz consigo justificam o caráter exaustivo da inquisição a que é submetido. 3. Através do princípio de uma latência intrínseca à sexualidade: se é preciso arrancar a verdade do sexo por meio da técnica da confissão, não é, simplesmente, porque ela seja difícil de dizer, ou porque esteja submetida, às interdições da decência. E sim, porque o funcionamento do sexo é obscuro; porque escapar faz parte de sua natureza e sua energia, assim como seus mecanismos se esquivam; porque seu poder causal é, em parte, clandestino. O século XIX desloca a confissão ao integrá-la a um projeto de discurso científice; ela não tende mais a tratar somente daquilo que o sujeito gostaria de esconder, porém daquilo que se esconde ao próprio sujeito, e que só se pode revelar progressivamente e através de uma confissão da qual participam o interrogador e o interrogado, cada um por seu lado. O princípio de uma latência essencial à sexualidade permite articular a coerção de uma confissão difícil a uma prática científica. É bem preciso arrancá-la, e à força, já que ela se esconde. 4. Através do método da interpretação: não é somente porque aquele que ouve tem o poder de perdoar, de consolar e de dirigir que é necessário confessar. É que o trabalho da verdade a ser produzida, caso se queira validá-lo cientificamente, deve passar por essa relação. A verdade não está unicamente no sujeito, que a revelaria pronta e acabada ao confessá-la. Ela se constitui em dupla tarefa: presente, porém incompleta e cega em relação a si própria, naquele que fala, só podendo completar-se naquele que a recolhe. A este incumbe a tarefa de dizer a verdade dessa obscura verdade: é preciso duplicar a revelação da confissão pela decifração daquilo que ela diz. Aquele que escuta não será simplesmente o dono do perdão, o juiz que condena ou isenta: será o dono da verdade. Sua função é hermenêutica. Seu poder em relação à confissão não consiste somente em exigi-la, antes dela ser feita, ou em decidir após ter sido proferida, porém em constituir, através dela e de sua decifração, um discurso de verdade. O século XIX tornou possível fazer funcionar os procedimentos de confissão na formação regular de um discurso científico, fazendo dela não mais uma prova, mas um sinal e, da sexualidade, algo a ser interpretado. 5. Através da medicalização dos efeitos da confissão: a obtenção da confissão e seus efeitos são recodifiçados na forma de operações terapêuticas. O que significa, inicialmente, que o domínio do sexo não será mais colocado, exclusivamente, sob o registro da culpa e do pecado, do excesso ou da transgressão e sim no regime (que, aliás, nada mais é do que sua transposição) do normal e do patológico; define-se, pela primeira vez, uma morbidez própria do sexual; o sexo aparece como um campo de alta fragilidade patológica: superfície de repercussão para outras doenças, mas também centro de uma nosografia própria, a do instinto, das tendências, das imagens, do prazer e da conduta. O que quer dizer, também, que a confissão ganhará sentido e se tornará necessária entre as intervenções médicas: exigida pelo médico, indispensável ao diagnóstico e eficaz, por si mesma, na cura. A verdade cura quando dita a tempo, quando dita a quem é devido e por quem é, ao mesmo tempo, seu detentor e responsável. Consideremos os grandes marcos históricos: em ruptura com as tradições da ars erótica, nossa sociedade constituiu uma scientia sexualis. Mais precisamente, atribuiu-se a tarefa de produzir discursos verdadeiros sobre o sexo, e isto tentando ajustar, não sem dificuldade, o antigo procedimento da confissão às regras do discurso científico. A scientia sexualis, desenvolvida a partir do século XIX, paradoxalmente, guarda como núcleo o singular rito da confissão obrigatória e exaustiva, que constituiu, no Ocidente cristão, a primeira técnica para produzir a verdade do sexo. Desde o século XVI, esse rito fora, pouco a pouco desvinculado do sacramento da penitência e, por intermédio da condução das almas e da direção espiritual — ars artium — emigrou para a pedagogia, para as relações entre adultos e crianças, para as relações familiares, a medicina e a psiquiatria. Em todo caso, há quase cento e cinquenta anos, um complexo dispositivo foi instaurado para produzir discursos verdadeiros sobre o sexo: um dispositivo que abarca amplamente a história, pois vincula a velha injunção da confissão aos métodos da escuta clínica. E, através desse dispositivo, pôde aparecer algo como a "sexualidade" enquanto verdade do sexo e de seus prazeres."
  • "É a 'economia' dos discursos, ou seja, sua tecnologia intrínseca, as necessidades de seu funcionamento, as táticas que instauram, os efeitos de poder que os sustém e que veiculam — é isso, e não um sistema de representações, o que determina as características fundamentais do que eles dizem."
  • "Consideremos a hipótese geral do trabalho. A sociedade que se desenvolve no século XVIII — chame-se, burguesa, capitalista ou industrial — não reagiu ao sexo com uma recusa em reconhecê-lo. Ao contrário, instaurou todo um aparelho para produzir discursos verdadeiros sobre ele. Não somente falou muito e forçou todo mundo a falar dele, como também empreendeu a formulação de sua verdade regulada. Como se suspeitasse nele um Segredo capital. Como se tivesse necessidade dessa produção de verdade. Como se lhe fosse essencial que o sexo se inscrevesse não somente numa economia do prazer mas, também, num regime ordenado de saber. Dessa forma, ele se tornou, progressivamente, o objeto da grande suspeita; o sentido geral e inquietante que, independentemente de nós mesmos, percorre nossas condutas e nossas existências; o ponto frágil através do qual nos chegam as ameaças do mal; o fragmento de noite que cada qual traz consigo. Significação geral, segredo universal, causa onipresente, medo que nunca termina. De tal modo que, nessa "questão" do sexo (nos dois sentidos: de interrogatório e de problematização; de exigência de confissão e de integração a um campo de racionalização), desenvolvem-se dois processos sempre em mútua referência: nós lhe pedimos dizer a verdade (mas, já que ele é o segredo e escapa a si próprio, reservamo-nos dizer a verdade — finalmente esclarecida, decifrada — sobre a sua verdade); e lhe pedimos para nos dizer nossa verdade, ou melhor, para dizer a verdade, profundamente oculta, desta verdade de nós mesmos que acreditamos possua em imediata consciência. Nós dizemos a sua verdade, decifrando o que dela ele nos diz; e ele nos diz a nossa, liberando o que estava oculto. Foi nesse jogo que se constituiu, lentamente, desde há vários séculos, um saber do sujeito, saber não tanto sobre sua forma porém daquilo que o cinde; daquilo que o determina, talvez, e sobretudo o faz escapar a si mesmo. Talvez isso pareça inopinado, mas não é estranho quando se pensa na longa história da confissão cristã e judiciária, nos deslocamentos e transformações desta forma de saber-poder, tão básica no Ocidente, que é a confissão: através de círculos cada vez mais fechados, o projeto de uma ciência do sujeito começou a gravitar em torno da questão do sexo. A causalidade [pág. 68] no sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível desenrolar-se no discurso do sexo. Contudo, não devido a alguma propriedade natural inerente ao próprio sexo, mas em função das táticas de poder que são imanentes a tal discurso."
  • "O poder seria aceito se fosse inteiramente cínico? O segredo, para ele, não é da ordem do abuso; é indispensável ao seu funcionamento. E não somente porque o impõe aos que sujeita como, também, talvez porque lhes é, na mesma medida, indispensável: aceitá-lo-iam, se só vissem nele um simples limite oposto a seus desejos, deixando uma parte intacta — mesmo reduzida — de liberdade? O poder, como puro limite traçado à liberdade, pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral de sua aceitabilidade."
  • "Esse termo de 'poder', porém, corre o risco de induzir a vários mal-entendidos. Mal-entendidos a respeito de sua identidade, forma e unidade. Dizendo poder, não quero significar 'o Poder', como conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um Estado determinado. Também não entendo poder como modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma da regra. Enfim, não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. A condição de possibilidade do poder, em todo caso, o ponto de vista que permite tornar seu exercício inteligível até em seus efeitos mais "periféricos" e, também, enseja empregar seus mecanismos como chave de inteligibilidade do campo social, não deve ser procurada na existência primeira de um ponto central, num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes; é o suporte móvel das correlações de força que, devido a sua desigualdade, induzem continuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis. Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares. E 'o' poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de auto-reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, devemos ser nominalista: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada. Seria, então, preciso inverter a fórmula e dizer que a política é a guerra prolongada por outros meios? Talvez, se ainda quisermos manter alguma distinção entre guerra e política, devemos afirmar, antes, que essa multiplicidade de correlações de força pode ser codificada — em parte, jamais totalmente — seja na forma de 'guerra', seja na forma de 'política'; seriam duas estratégias diferentes (mas prontas a se transformarem uma na outra) para integrar essas correlações de força desequilibradas, heterogêneas, instáveis, tensas. Dentro dessa linha, poder-se-ia introduzir certo número de proposições: — que o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis; — que as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimentos, relações sexuais), mas lhes são imanentes; são os efeitos imediatos das partilhas, desigualdade e desequilíbrios que se produzem nas mesmas e, reciprocamente, são as condições internas destas diferenciações; as relações de poder não estão em posição de superestrutura, com um simples papel de proibição ou de recondução; possuem, lá onde atuam, um papel diretamente produtor; — que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social. Deve-se, ao contrário, supor que as correlações de força múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente, em troca, procedem a redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos de série, convergências desses afrontamentos locais. As grandes dominações são efeitos hegemônicos continuamente sustentados pela intensidade de todos estes afrontamentos; — que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas. Se, de fato, são inteligíveis, não é porque sejam efeito, em termos de causalidade, de uma outra instância que as explique, mas porque atravessadas de fora a fora por um cálculo: não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos. Mas isso não quer dizer que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito, individualmente; não busquemos a equipe que preside sua racionalidade; nem a casta que governa, nem os grupos que controlam os aparelhos do Estado, nem aqueles que tomam as decisões econômicas mais importantes, gerem o conjunto da rede de poderes que funciona em uma sociedade (e a faz funcionar); a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem — cinismo local do poder — que, encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto: lá, a lógica ainda é perfeitamente clara, as miras decifráveis e, contudo, acontece não haver mais ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las: caráter implícito das grandes estratégias anônimas, quase mudas, que coordenam táticas loquazes, cujos 'inventores' ou responsáveis quase nunca são hipócritas; — que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. Deve-se afirmar que estamos necessariamente 'no' poder, que dele não se 'escapa', que não existe, relativamente a ele, exterior absoluto, por estarmos inelutavelmente submetidos à lei? Ou que, sendo a história ardil da razão, o poder seria o ardil da história — aquele que sempre ganha? Isso equivaleria a desconhecer o caráter estritamente relacional das correlações de poder. Elas não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esse pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder. Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa — alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. Mas isso não quer dizer que sejam apenas subproduto das mesmas, sua marca em negativo, formando, por oposição à dominação essencial, um reverso inteiramente passivo, fadado à infinita derrota. As resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é por isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada. Elas são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como o interlocutor irredutível. Também são, portanto, distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento. Grandes rupturas radicais, divisões binárias e maciças? Às vezes. É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizar exatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistência atravessa as estratificações sociais e as unidades individuais. E é certamente a codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma revolução, um pouco à maneira do Estado que repousa sobre a integração institucional das relações de poder. É nesse campo das correlações de força que se deve tentar analisar os mecanismos de poder. Com isso será possível escapar ao sistema Soberano-Lei que por tanto tempo fascinou o pensamento político. E se é verdade que Maquiavel foi um dos poucos — e nisso estava certamente o escândalo do seu 'cinismo' — a pensar o poder do Príncipe em termos de correlações de força, talvez seja necessário dar um passo a mais, deixar de lado a personagem do Príncipe e decifrar os mecanismos do poder a partir de uma estratégia imanente às correlações de força."
nov 29 2016 ∞
nov 29 2016 +