• A história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração.
  • Havia um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia - para a descrição intrínseca do monumento.
  • [...] As margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas: além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede.
  • É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros.
  • Não se trata, é claro, de recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas; definir em que condições e em vista de que análises algumas são legítimas; indicar as que, de qualquer forma, não podem mais ser admitidas. Seria bem possível, por exemplo, que as noções de "influência" ou de "evolução" originassem uma crítica que as colocasse - por um tempo mais ou menos longo - fora de uso. Mas a "obra", o "livro", ou ainda estas unidades como a "ciência" ou a "literatura", será preciso sempre dispensá-las? Será preciso tomá-las por ilusões, construções sem legitimidade, resultados mal alcançados? Será preciso desistir de se buscar qualquer apoio nelas, mesmo provisoriamente, e de lhes dar uma definição? Trata-se, de fato, de arrancá-las de sua quase-evidência, de liberar os problemas que colocam; reconhecer que não são o lugar tranquilo a partir do qual outras questões podem ser levantadas (sobre sua estrutura, sua coerência, sua sistematicidade, suas transformações), mas que colocam por si mesmas todo um feixe de questões (Que são? Como defini-las ou limitá-las? A que tipos distintos de leis podem obedecer? De que articulação são suscetíveis? A que subconjuntos podem dar lugar? Que fenômenos específicos fazem aparecer no campo do discurso?). Trata-se de reconhecer que elas talvez não sejam, afinal de contas, o que se acreditava que fossem à primeira vista. Enfim, que exigem uma teoria; e que essa teoria não pode ser elaborada sem que apareça, em sua pureza não sintética, o campo dos fatos do discurso a partir do qual são construídas.
  • Certamente só podemos estabelecer um sistema linguístico (se não o construímos artificialmente) utilizando um corpo de enunciados ou uma coleção de fatos de discurso; mas trata-se, então, de definir, a partir desse conjunto que tem valor de amostra, regras que permitam construir eventualmente outros enunciados diferentes daqueles: mesmo que tenha desaparecido há muito tempo, mesmo que ninguém a fale mais e que tenha sido restaurada a partir de raros fragmentos, uma língua constitui sempre um sistema para enunciados possíveis - um conjunto finito de regras que autoriza um número infinito de desempenhos.
  • Mas se isolamos, em relação à língua e ao pensamento, a instância do acontecimento enunciativo, não é para disseminar uma poeira de fatos e sim para estarmos seguros de não relacioná-la com operadores de síntese que sejam puramente psicológicos (a intenção do autor, a forma de seu espírito, o rigor de seu pensamento, os temas que o obcecam, o projeto que atravessa sua existência e lhe dá significação) e podermos apreender outras formas de regularidade, outros tipos de relações. Relações entre os enunciados (mesmo que escapem à consciência do autor; mesmo que se trate de enunciados que não têm o mesmo autor; mesmo que os autores não se conheçam); relações entre grupos de enunciados assim estabelecidos (mesmo que esses grupos não remetam aos mesmos domínios nem a domínios vizinhos; mesmo que não tenham o mesmo nível formal; mesmo que não constituam o lugar de trocas que podem ser determinadas); relações entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente diferente (técnica, econômica, social, política). Fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecê-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é fechá-lo em si mesmo; é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relações.
  • A unidade dos discursos sobre a loucura não estaria fundada na existência do objeto "loucura", ou na constituição de um único horizonte de objetividade; seria esse o jogo das regras que tornam possível, durante um período dado, o aparecimento dos objetos: objetos que são recortados por medidas de discriminação e de repressão, objetos que se diferenciam na prática cotidiana, na jurisprudência, na casuística religiosa, no diagnóstico dos médicos, objetos que se manifestam em descrições patológicas, objetos que são limitados por códigos ou receitas de medicação, de tratamento, de cuidados.
  • Em "ciências" como a economia e a biologia, tão voltadas para a polêmica, tão permeáveis a opções filosóficas ou morais, tão prontas em certos casos à utilização política, é legítimo, em primeira instância, supor que uma certa temática seja capaz de ligar e de animar, como um organismo que tem suas necessidades, sua força interna e suas capacidades de sobrevivência, um conjunto de discursos.
  • O discurso é algo inteiramente diferente do lugar em que vêm se depositar e se superpor, como em uma simples superfície de inscrição, objetos que teriam sido anteriormente.
  • [...] Não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade. Mas esta dificuldade não é apenas negativa; não se deve associá-la a um obstáculo cujo exclusivamente, de cegar, perturbar, impedir a mascarar a pureza da evidência ou a obstinação muda das próprias coisas; o objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo e permitir-lhe que se encarne em uma visível e loquaz objetividade; ele não preexiste a si mesmo, retido por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz, mas existe sob as condições positivas de um feixe complexo de relações.
  • Mas é preciso distinguir, além disso, as relações secundárias que podem estar formuladas no próprio discurso; o que, por exemplo, os psiquiatras do século XIX puderam dizer sobre as relações entre a família e a criminalidade não reproduz, sabemos bem, o jogo das dependências reais; mas não reproduz tampouco o jogo das relações que tornam possíveis e sustentam os objetos do discurso psiquiátrico. Assim se abre todo um espaço articulado de descrições possíveis: sistema das relações primárias ou reais, sistema das relações secundárias ou reflexivas, e sistema das relações que podem ser chamadas propriamente de discursivas. O problema é fazer com que apareça a especificidade dessas últimas e seu jogo com as outras duas.
  • Finalmente, a Psicopatologia se apresentava como uma disciplina, sempre se renovando, sempre marcada por descobertas, críticas, erros corrigidos; o sistema de formação que se definiu permanece estável. Mas entendamos: não são os objetos que permanecem constantes, nem o domínio que formam; nem mesmo seu ponto de emergência ou seu modo de caracterização; mas o estabelecimento de relação entre as superfícies em que podem aparecer, em que podem ser delimitados, analisados e especificados.
  • Em uma palavra, [na história das ideias,] quer-se, na verdade, renunciar às "coisas", "despresentificá-las"; conjurar sua rica, relevante e imediata plenitude, que costumamos considerar como a lei primitiva de um discurso que dela só se afastaria pelo erro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inércia das crenças e das tradições ou, ainda, desejo, inconsciente talvez, de não ver e de não dizer; substituir o tesouro enigmático das "coisas" anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento histórico; fazer uma história dos objetos discursivos
  • A sagacidade dos críticos não se enganou: de uma análise como a que empreendo, as palavras estão tão deliberadamente ausentes quanto as próprias coisas; não há nem descrição de um vocabulário nem recursos à plenitude viva da experiência. Não se volta ao aquém do discurso - lá onde nada ainda foi dito e onde as coisas apenas despontam sob uma luminosidade cinzenta; não se vai além para reencontrar as formas que ele dispôs e deixou atrás de si; fica-se, tenta-se ficar no nível do próprio discurso.
  • [...] Em todas essas pesquisas em que avancei ainda tão pouco, gostaria de mostrar que os "discursos", tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas regras definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos.
  • "As palavras e as coisas" é o título - sério - de um problema; é o título - irônico - do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os dados e revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam.
  • O discurso [...] não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo.
  • [...] Como não seria preciso relacionar a formação dos objetos nem às palavras nem às coisas, a das enunciações, nem à forma pura do conhecimento nem ao sujeito psicológico, a dos conceitos, nem à estrutura da idealidade nem à sucessão das idéias, não é preciso relacionar a formação das escolhas teóricas nem a um projeto fundamental nem ao jogo secundário das opiniões.
  • Uma formação discursiva não desempenha, pois, o papel de uma figura que pára o tempo e o congela por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria de processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações, mutações e processos. Não se trata de uma forma intemporal, mas de um esquema de correspondência entre diversas séries temporais.
  • Finalmente, em lugar de estreitar, pouco a pouco, a significação tão flutuante da palavra "discurso", creio ter-lhe multiplicado os sentidos: ora domínio geral de todos os enunciados, ora grupo individualizável de enunciados, ora prática regulamentada dando conta de um certo número de enunciados; e a própria palavra "discurso", que deveria servir de limite e de invólucro ao termo "enunciado", não a fiz variar à medida que deslocava minha análise ou seu ponto de aplicação, à medida que perdia de vista o próprio enunciado?
  • O ato ilocutório não é o que ocorreu antes do momento do enunciado (no pensamento do autor ou no jogo de suas intenções); não é o que se pôde produzir, depois do próprio enunciado, no sulco que deixou atrás de si e nas consequências que provocou; mas sim o que se produziu pelo próprio fato de ter sido enunciado - e precisamente esse enunciado (e nenhum outro) em circunstâncias bem determinadas.
  • Se uma proposição, uma frase, um conjunto de signos podem ser considerados "enunciados", não é porque houve, um dia, alguém para proferi-los ou para depositar, em algum lugar, seu traço provisório; mas sim na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito.
  • Assim, a positividade desempenha o papel do que se poderia chamar um a priori histórico. Justapostas, as duas palavras provocam um efeito um pouco gritante; quero designar um a priori que não seria condição de validade para juízos, mas condição de realidade para enunciados.
  • No fundo, talvez eu não passe de um historiador das idéias, mas envergonhado ou presunçoso. Um historiador das idéias que inteiramente sua disciplina; que desejou, sem dúvida, dar-lhe o rigor que tantas outras descrições, bastante próximas, adquiriram recentemente; mas que, incapaz de modificar realmente a velha forma de análise, incapaz de fazer com que transpusesse o limiar da cientificidade (quer porque tal metamorfose jamais seja possível, quer porque não tenha tido forças para operar ele mesmo essa transformação), declara, para iludir, que sempre fez e quis fazer outra coisa.
  • Ora, a descrição arqueológica é precisamente o abandono da história das idéias, recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos, tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram. O fato de que alguns não reconheçam nessa tentativa a história de sua infância, que a lamentem e que invoquem, numa época que não é mais feita para ela, a grande sombra de outrora, prova certamente o extremo de sua fidelidade. Tal zelo conservador torna-me mais firme em meu propósito e me dá certeza do que quis fazer.
  • A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras. Ela não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa, como elemento que deveria ser transparente, mas cuja opacidade importuna é preciso atravessar frequentemente para reencontrar, enfim, aí onde se mantém à parte, a profundidade do essencial; ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento.
  • A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive suave, os discursos ao que os precede, envolve ou segue. Não espreita o momento em que, a partir do que ainda não eram, tornaram-se o que são; nem tampouco o momento em que, desfazendo a solidez de sua figura, vão perder, pouco a pouco, sua identidade.
  • Não se deve, portanto, opor a regularidade de um enunciado à irregularidade de outro (que seria menos esperado, mais singular, mais rico em inovações), mas sim a outras regularidades que caracterizam outros enunciados.
  • Temos de tratar de acontecimentos de tipos e de níveis diferentes, tomados em tramas históricas distintas; uma homogeneidade enunciativa que se instaura não implica de modo algum que, de agora em diante e por décadas ou séculos, os homens vão dizer e pensar a mesma coisa; não implica, tampouco, a definição, explícita ou não, de um certo número de princípios de que todo o resto resultaria como consequência. As homogeneidades (e heterogeneidades) enunciativas se entrecruzam com continuidades (e mudanças) linguísticas, com identidades (e diferenças) lógicas, sem que umas e outras caminhem no mesmo ritmo ou se dominem necessariamente.
  • A história das idéias, normalmente, dá um crédito de coerência ao discurso que ela analisa. Será que lhe ocorre constatar uma irregularidade no uso das palavras, diversas proposições incompatíveis, um jogo de significações que não se ajustam umas às outras, conceitos que juntos não podem ser sistematizados? Ela se encarrega de encontrar, em um nível mais ou menos profundo, um princípio de coesão que organiza o discurso e lhe restitui uma unidade oculta. Essa lei de coerência é uma regra heurística, uma obrigação de procedimento, quase uma coação moral da pesquisa: não multiplicar inutilmente as contradições; não se deixar prender às pequenas diferenças; não atribuir peso demasiado às transformações, aos arrependimentos, aos retornos ao passado, às polêmicas; não supor que o discurso dos homens esteja continuamente minado, a partir do interior, pela contradição de seus desejos, das influências que sofreram, ou das condições em que vivem; mas admitir que se eles falam e dialogam é muito mais para superar essas contradições e encontrar o ponto a partir do qual poderão ser dominadas.
  • Ao fim desse trabalho, permanecem somente contradições residuais - acidentes, faltas, falhas - ou surge, ao contrário, como se toda a análise a isso tivesse conduzido, em surdina e apesar dela, a contradição fundamental: emprego, na própria origem do sistema, de postulados incompatíveis, entrecruzamento de influências que não se podem conciliar, difração primeira do desejo, conflito econômico e político que opõe uma sociedade a si mesma; tudo isso, ao invés de aparecer como elementos superficiais que é preciso reduzir, se revela finalmente como princípio organizador, como lei fundadora e secreta que justifica todas as contradições menores e lhes dá um fundamento sólido: modelo, em suma, de todas as outras oposições. Tal contradição, longe de ser aparência ou acidente do discurso, longe de ser aquilo de que é preciso libertá-lo para que ele libere, enfim, sua verdade aberta, constitui a própria lei de sua existência: é a partir dela que ele emerge; é ao mesmo tempo para traduzi-la e superá-la que ele se põe a falar; é para fugir dela, enquanto ela renasce sem cessar através dele, que ele continua e recomeça indefinidamente, é por ela estar sempre aquém dele e por ele jamais poder contorná-la inteiramente que ele muda, se metamorfoseia, escapa de si mesmo em sua própria continuidade. A contradição funciona, então, ao longo do discurso, como o princípio de sua historicidade.
  • Fazendo assim com que a contradição entre duas teses derive de um certo domínio de objetos, de suas delimitações e de seu esquadrinhamento, não a resolvemos; não descobrimos o ponto de conciliação. Mas não a transferimos tampouco a um nível mais fundamental; definimos o lugar em que se dá; fazemos aparecer a ramificação da alternativa; localizamos a divergência e o lugar em que os dois discursos se justapõem.
  • Ela desiste, pois, de tratar a contradição como uma função geral que se exerce, do mesmo modo, em todos os níveis do discurso, e que a análise deveria suprimir inteiramente ou reconduzir a uma forma primeira e constitutiva: o grande jogo da contradição presente sob mil facetas, depois suprimida, afinal reconstituída no conflito maior em que ela culmina - é substituído pela análise dos diferentes tipos de contradição, diferentes níveis segundo os quais se pode demarcá-la, diferentes funções que ela pode exercer.
  • O horizonte ao qual se dirige a arqueologia não é, pois, uma ciência, uma racionalidade, uma mentalidade, uma cultura; é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de cruzamentos não podem ser fixados de imediato. A arqueologia: uma análise comparativa que não se destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizá-los, mas sim a repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparação arqueológica não tem um efeito unificador, mas multiplicador.
  • Em outras palavras, a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral; ela procura descobrir todo o domínio das instituições, dos processos econômicos, das relações sociais nas quais pode articular-se uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua especificidade não lhe dão, por isso, um status de pura idealidade e de total independência histórica; o que ela quer revelar é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso que têm, eles próprios, seu tipo de historicidade e que estão relacionados com todo um conjunto de historicidades diversas.
  • A arqueologia não tenta tratar como simultâneo o que se dá como sucessivo; não tenta imobilizar o tempo e substituir seu fluxo de acontecimentos por correlações que delineiam uma figura imóvel. O que ela suspende é o tema de que a sucessão é um absoluto: um encadeamento primeiro e indissociável a que o discurso estaria submetido pela lei de sua finitude; e também o tema de que no discurso só há uma forma e um único nível de sucessão. Ela substitui esses temas por análises que fazem aparecer, ao mesmo tempo, as diversas formas de sucessão que se superpõem nos discursos (e por formas não se deve entender simplesmente os ritmos ou as causas, mas as próprias séries) e a maneira pela qual se articulam as sucessões assim especificadas.
  • A idéia de um único e mesmo corte que divide de uma só vez, e em um momento dado, todas as formações discursivas, interrompendo-as com um único movimento e reconstituindo-as segundo as mesmas regras, não poderia ser mantida. A contemporaneidade de várias transformações não significa sua exata coincidência cronológica: cada transformação pode ter seu índice particular de "Viscosidade" temporal.
  • Enquanto a história das idéias encontra o ponto de equilíbrio de sua análise no elemento do conhecimento (encontrando-se, assim, coagida a reencontrar a interrogação transcendental), a arqueologia encontra o ponto de equilíbrio de sua análise no saber - isto é, era um domínio em que o sujeito é necessariamente situado e dependente, sem que jamais possa ser considerado titular (seja como atividade transcendental, seja como consciência empírica).
  • A ideologia não exclui a cientificidade. Poucos discursos deram tanto lugar à ideologia quanto o discurso clínico ou o da economia política: não é uma razão suficiente para apontar erro, contradição, ausência de objetividade no conjunto de seus enunciados.
  • Corrigindo-se, retificando seus erros, condensando suas formalizações, um discurso não anula forçosamente sua relação com a ideologia. O papel da ideologia não diminui à medida que cresce o rigor e que se dissipa a falsidade.
  • [...] Uma vantagem secundária: poder dirigir-se em diagonal a todas as formas de estruturalismos que é preciso tolerar - e às quais já foi preciso ceder tanto - e lhes dizer: "Vejam a que vocês se exporiam se tocassem nos domínios que ainda são os nossos; os procedimentos que vocês adotam, e que talvez tenham em outro lugar alguma validade, aí reencontrariam logo seus limites; eles deixariam escapar todo o conteúdo concreto que vocês queriam analisar; vocês seriam obrigados a renunciar a seu empirismo prudente; e vocês cairiam, contra a vontade, em uma estranha ontologia da estrutura. Tenham, pois, a prudência de se manter nos domínios que, sem dúvida, conquistaram, mas que fingiremos, de agora em diante, haver concedido a vocês, já que nós próprios fixamos-lhes os limites." Quanto à vantagem maior, ela consiste, é claro, em mascarar a crise em que estamos envolvidos há muito tempo e cujo âmbito não pára de crescer: crise em que estão comprometidas a reflexão transcendental com a qual se identificou a filosofia desde Kant; a temática da origem, da promessa do retorno pela qual evitamos a diferença de nosso presente; um pensamento antropológico que consagra todas as interrogações à questão do ser do homem, e permite evitar a análise da prática; todas as ideologias humanistas; e - enfim e sobretudo - o status do sujeito. É esse debate que você sonha mascarar e de que espera, creio, desviar a atenção, prosseguindo os jogos agradáveis da gênese e do sistema, da sincronia e do devir, da relação e da causa, da estrutura e da história. Você está certo de não praticar uma metátese teórica?
  • Foi, sem dúvida, muito doloroso, para eles, reconhecer que sua história, sua economia, suas práticas sociais, a língua que falam, a mitologia de seus ancestrais, até as fábulas que lhes contavam na infância, obedecem a regras que não se mostram inteiramente à sua consciência; eles não desejam ser privados, também e ainda por cima, do discurso em que querem poder dizer, imediatamente, sem distância, o que pensam, crêem ou imaginam; vão preferir negar que o discurso seja uma prática complexa e diferenciada que obedece a regras e a transformações analisáveis, a ser destituídos da frágil certeza, tão consoladora, de poder mudar, se não o mundo, se não a vida, pelo menos seu "sentido", pelo simples frescor de uma palavra que viria apenas deles mesmos e permaneceria o mais próximo possível da fonte, indefinidamente. Tantas coisas em sua linguagem já lhes escaparam: eles não querem mais que lhes escape, além disso, o que dizem, esse pequeno fragmento de discurso - falado ou escrito, pouco importa cuja débil e incerta existência deve levar sua vida mais longe e por mais tempo. Não podem suportar (e os compreendemos um pouco) ouvir dizer: "O discurso não é a vida: seu tempo não é o de vocês; nele, vocês não se reconciliarão com a morte; é possível que vocês tenham matado Deus sob o peso de tudo que disseram; mas não pensem que farão, com tudo o que vocês dizem, um homem que viverá mais que ele."
nov 4 2015 ∞
nov 4 2015 +