- "A verdade não faz sentido, a grandeza do mundo me encolhe. Aquilo que provavelmente perdi e finalmente tive, veio no entanto me deixar carente como uma criança que anda sozinha pela terra." (p. 17)
- "É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale." (p. 18)
- "viver não é a coragem, saber que se vive é a coragem" (p. 23)
- "A espirituosa elegância de minha casa vem de que tudo aqui está entre aspas. Por honestidade com uma verdadeira autoria, eu cito o mundo, eu o citava, já que ele não era nem eu nem meu." (p. 30)
- Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde — quero dizer, só mais tarde eu teria uma profunda falta de sentido. Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido — é o sentido. Todo momento de 'falta de sentido' é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias." (p. 34)
- "Não que eu estivesse presa mas estava localizada. Tão localizada como se ali me tivessem fixado com o simples e único gesto de me apontar com o dedo, apontar a mim e a um lugar. // Eu já havia conhecido anteriormente o sentimento de lugar. Quando era criança, inesperadamente tinha a consciência de estar deitada numa cama que se achava na cidade que se achava na Terra que se achava no Mundo. Assim como em criança, tive então a noção precisa de que estava inteiramente sozinha numa casa, e que a casa era alta e solta no ar, e que esta casa tinha baratas invisíveis." (p. 49)
- "A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam [...] A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e por isso primariamente vivo. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido." (p. 59)
- "'Grite', ordenei-me quieta. [...] Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber: mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável." (p. 61)
- "Como é luxuoso este silêncio. É acumulado de séculos. É um silêncio de barata que olha. O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas. As coisas sabem tanto as coisas que a isto... a isto chamarei de perdão, se eu quiser me salvar no plano humano. É o perdão em si. Perdão é um atributo da matéria viva." (p. 65)
- "Como se uma mulher tranquila tivesse simplesmente sido chamada e tranquilamente largasse o bordado na cadeira, se erguesse, e sem uma palavra — abandonando sua vida, renegando bordado, amor e alma já feita — sem uma palavra essa mulher se pusesse calmamente de quatro, começasse a engatinhar e se arrastar com olhos brilhantes e tranquilos: é que a vida anterior a reclamara, e ela fora." (p. 69)
- "De morrer, sim, eu sabia, pois morrer era o futuro e é imaginável, e de imaginar eu sempre tivera tempo. Mas o instante, o estante este — a atualidade — isso não é imaginável, entre a atualidade e eu não há intervalo: é agora, em mim." (p. 77)
- "Eu, que chamava de amor a minha esperança de amor. // Mas agora, é nesta atualidade neutra da natureza e da barata e do sono vivo de meu corpo, que eu quero saber o amor. E quero saber se a esperança era uma contemporização com o impossível. Ou se era um adiamento do que é possível já — e que eu só não tenho por medo. Quero o tempo presente que não tem promessa, que é, que está sendo." (p. 87)
- "A identidade me é proibida mas meu amor é tão grande que não resistirei à minha vontade de entrar no tecido misterioso, nesse plasma de onde talvez eu nunca mais possa sair. Minha crença, porém, também é tão profunda que, se eu não puder sair, eu sei, mesmo na minha nova irrealidade o plasma do Deus estará na minha vida." (p. 98)
- "Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim. Não sei se estou entendendo o que falo, estou sentindo — e receio muito o sentir, pois sentir é apenas um dos estilos de ser. No entanto atravessarei o mormaço estupefato que se incha do nada e terei que entender o neutro com o sentir." (p. 99)
- "E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que o erro muitas vezes se havia tornado o meu caminho. Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia — é que se fazia enfim uma brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, já teria entrado por ela. Mas eu sempre tivera medo de delírio e erro. Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo. Se a 'verdade' fosse aquilo que posso entender — terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho." (p. 109)
- "E tinha de saber, de antemão, que à hora de rezar do meu minarete, eu só poderia rezar para as areias. // Mas para as areias eu provavelmente estivera pronta desde que nascera: eu saberia como rezá-las, para isso eu não precisaria me adestrar de antemão, como as macumbeiras que não rezam para as coisas mas rezam as coisas." (p. 110)
mar 21 2021 ∞
mar 21 2021 +