- Todas me olhavam: percebi que eram os membros do júri. Mas não sou capaz de dizer o que os distinguia uns dos outros. Tive apenas uma impressão: eu estava no banco de um eléctrico e todos estes passageiros anônimos espiavam o recém-chegado para lhe observar os ridículos. Sei perfeitamente que esta ideia era parva pois aqui não era o ridículo que eles procuravam, era o crime. Porém a diferença entre as duas coisas não se me afigurava muito grande e, de qualquer modo, foi a ideia que me veio à cabeça.
- Na obscuridade da minha prisão rolante, reencontrei um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que tantas vezes me sentira contente. O pregão dos vendedores de jornais no ar já mais fresco, os últimos pássaros no largo, o grito dos vendedores de sanduíches, o queixume dos eléctricos nas curvas íngremes da cidade e este rumor do céu antes da noite tombar sobre o porto, tudo isto reconstituía aos meus olhos um cego itinerário que já conhecia muito antes de entrar para a prisão. Sim, era a hora em que, há muito, muito tempo, eu me sentia contente. O que então me aguardava, era sempre um sono ligeiro e sem sonhos. E no entanto alguma coisa se modificara, pois com a expectativa do dia seguinte, foi a minha cela, que reencontrei enfim. Como se os caminhos familiares traçados nas noites de verão pudessem conduzir, tanto às prisões, como aos sonos inocentes.
- Gostaria de lhe poder explicar cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependera verdadeiramente de nada. Estava sempre dominado pelo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã. Mas evidentemente, no estado a que me haviam levado, não podia falar a ninguém neste tom. Não tinha o direito de me mostrar afetuoso, de ter boa vontade.
- O que neste momento me interessa, é fugir à engrenagem, saber se o inevitável pode ter uma saída.
- Apesar da minha boa vontade, eu não era capaz de aceitar esta certeza insolente. Por que afinal de contas, existia uma ridícula desproporção entre o julgamento que a fundamentara e o seu imperturbável desenvolvimento, a partir do instante em que a sentença fora pronunciada. O facto de a sentença ter sido lida, não às cinco da tarde, mas às oito horas da noite, o facto de que podia ter sido outra completamente diferente, de que fora resolvida por homens que mudam de roupa de baixo e de que fora dada em nome de uma noção tão imprecisa como o povo francês (ou alemão, ou chinês), tudo isto me parecia tirar seriedade a uma decisão tão grave. Era obrigado a reconhecer, no entanto que, a partir do instante em que fora tomada, os seus efeitos se tornavam tão certos, tão sérios como a presença desta parede ao longo da qual eu me estendia.
- Como não percebera eu que não havia nada mais importante do que uma execução capital e que, sob um determinado ponto de vista, era mesmo a única coisa verdadeiramente interessante para um homem?!
- Porque, pensando bem, considerando as coisas com calma, verificava que o que havia de defeituoso na guilhotina era não existir nenhuma possibilidade de salvação, absolutamente nenhuma. A morte do paciente, em suma, era decidida de uma vez para sempre.
- Mas veio-me à ideia numa destas manhãs, a fotografia de uma execução retumbante, publicada nos jornais da época. Na realidade a máquina estava simplesmente no chão. Era muito mais estreita do que eu julgava. É engraçado como não me lembrei disto há mais tempo. Na fotografia, a máquina impressionara-me como uma obra de precisão, brilhante e acabada. Exageramos sempre as coisas que não conhecemos. Verifiquei, ao contrário, que era tudo muito simples: a máquina estava ao mesmo nível do que o homem que para ela se dirige. Vai ter com ela, precisamente como iria ter com uma pessoa.
- O padre olhou em sua volta e respondeu, com uma voz subitamente muito fatigada: “Sei que todas estas pedras suam dor. Mas, no fundo do coração, sei também que os mais miseráveis de vós viram sair da obscuridade uma face divina. É esta face que lhe pedem para ver”. Animei-me um pouco. Disse-lhe que olhava estas paredes há meses e meses. Não havia nada no mundo que eu conhecesse melhor. Talvez, de facto, há muito tempo, eu houvesse procurado nelas uma face. Mas essa face tinha a cor do céu e a chama do desejo: era a de Maria. Procurara-a em vão. Agora, acabara-se. E, em qualquer caso, nunca vira esse suor surgir da pedra.
- Ia dizer-lhe para se ir embora, quando, virando-se para mim, exclamou de repente: “Não, não posso acreditá-lo. Tenho a certeza de que já lhe aconteceu desejar uma outra vida”. Respondi-lhe que com certeza, mas isso era o mesmo do que desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais bem feita. Era da mesma ordem.
- “Não, meu filho, disse ele pondo-me a mão no ombro. Estou ao seu lado, mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si”. Então, não sei por que, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um Inferno não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer. Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu, parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto. Mas ao menos segurava esta verdade, tanto como esta verdade me segurava a mim. Tinha tido razão, tinha ainda razão, teria sempre razão. Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra dada maneira.
- Cheiros da noite da terra e do sol refrescavam-me as fontes. A paz maravilhosa deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram apitos. Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que me era para sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de uma vida, arranjara um “noivo”, porque é que fingira recomeçar. Também lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido libertada e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpado do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio.
nov 4 2015 ∞
nov 4 2015 +