• "Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso." (Pos. 607 a 611)
  • "Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física." (Pos. 611 a 613)
  • "Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o 'privilégio' adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados." (Pos. 625 a 627)
  • "A derrubada desses 'micropoderes' não obedece portanto à lei do tudo ou nada; ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições; em compensação nenhum de seus episódios localizados pode ser inscrito na história senão pelos efeitos por ele induzidos em toda a rede em que se encontra." (Pos. 634 a 636)
  • "Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder." (Pos. 639 a 642)
  • "Essas relações de 'poder-saber' não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em redação ao sistema do poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas." (Pos. 642 a 644)
  • "Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em tomo, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos —de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência." (Pos. 668 a 672)
  • "O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma 'alma' o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo." (Pos. 679 a 681)
  • "Todas essas razões — quer sejam de precaução numa determinada conjuntura, ou de função no desenrolar de um ritual — fazem da execução pública mais uma manifestação de força do que uma obra de justiça; ou antes, é a justiça como força física, material e temível do soberano que é exibida. A cerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei." (Pos. 1.086 a 1.088)
  • "Deve-se conceber o suplício, tal como é ritualizado ainda no século XVIII, como um agente político. Ele entra logicamente num sistema punitivo, em que o soberano, de maneira direta ou indireta, exige, resolve e manda executar os castigos, na medida em que ele, através da lei, é atingido pelo crime. Em toda infração há um crimen majestatis, e no menor dos criminosos um pequeno regicida em potencial."
  • "O condenado, depois de ter andado muito tempo, exposto, humilhado, várias vezes lembrado do horror de seu crime, é oferecido aos insultos, às vezes aos ataques dos espectadores. Na vingança do soberano, a do povo era chamada a se insinuar. Não que esta seja o fundamento daquela e que o rei deva à sua maneira traduzir a vindita do povo; é antes o povo que deve trazer sua participação ao rei quando este vai se “vingar de seus inimigos”, até e principalmente quando esses inimigos estão no meio do povo."
  • "Se a multidão se comprime em torno do cadafalso, não é simplesmente para assistir ao sofrimento do condenado ou excitar a raiva do carrasco: é também para ouvir aquele que não tem mais nada a perder maldizer os juizes, as leis, o poder, a religião. O suplício permite ao condenado essas saturnais de um instante, em que nada mais é proibido nem punível. Ao abrigo da morte que vai chegar, o criminoso pode dizer tudo, e os assistintes aclamá-lo."
  • "Há nessas acusações, que só deveriam mostrar o poder aterrorizante do príncipe, todo um aspecto de carnaval em que os papéis são invertidos, os poderes ridicularizados e os criminosos transformados em heróis. A infâmia se transforma no contrário; a coragem deles, seus gritos e lamentos só podem preocupar a lei."
  • "O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e absolutamente “discreto”, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio."
  • "O que pertence à penalidade disciplinar é a inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela, os desvios. É passível de pena o campo indefinido do não-conforme."
  • "[...] efeito conseqüentemente dessa penalidade hierarquizante: distribuir os alunos segundo suas aptidões e seu comportamento, portanto segundo o uso que se poderá fazer deles quando saírem da escola; exercer sobre eles uma pressão constante, para que se submetam todos ao mesmo modelo, para que sejam obrigados todos juntos “à subordinação, à docilidade, à atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata prática dos deveres e de todas as partes da disciplina”. Para que, todos, se pareçam."
  • "As marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras."
  • "[...] quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista, agora é sempre perguntando-lhe o que ainda há nele de criança, que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis cometer."
  • "Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores."
  • "E se o juridismo universal da sociedade moderna parece fixar limites ao exercício dos poderes, seu panoptismo difundido em toda parte faz funcionar, ao arrepio do direito, uma maquinaria ao mesmo tempo imensa e minúscula que sustenta, reforça, multiplica a assimetria dos poderes e torna vãos os limites que lhe foram traçados."
  • "É talvez verdade que a matemática, na Grécia, nasceu das técnicas da medida; as ciências da natureza, em todo caso, nasceram por um lado, no fim da Idade Média, das práticas do inquérito. O grande conhecimento empírico que recobriu as coisas do mundo e as transcreveu na ordenação de um discurso indefinido que constata, descreve e estabelece os “fatos” (e isto no momento em que o mundo ocidental começava a conquista econômica e política desse mesmo mundo) tem sem dúvida seu modelo operatório na Inquisição — essa imensa invenção que nosso recente amolecimento colocou na sombra da memória."
oct 23 2014 ∞
nov 27 2014 +