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"[...] a ficção autoriza a generalização e a transmissão, possibilitando um compartilhamento a distância. dar-se conta de que aquilo de indizível, informulável e até impenetrável que vivemos, outros exprimiram por meio de imagens ou palavras, é experimentar um laço com outrem, um possível compartilhamento desses fracassos relacionais que nos isolam, uma possível conexão com experiências plurais ou até coletivas. é o que nos dão, cada uma em seu campo, a empatia da ficção e a racionalização da teoria - ambas se alimentando reciprocamente."
"como a ficção, a teoria ajuda a criar um vínculo com todos aqueles que nela se reconhecem. tanto uma como a outra abrem caminho para uma possível transmissão do que pode ter encerrado o sujeito no indizível, inimaginável, incompreensível, no não-simbolizável."
"a ficção é, aliás, um recurso a que as menininhas recorrem bem cedo em sua relação com a mãe, por meio dos enredos que inventam com suas bonecas, em que podem reencenar a relação mãe-filha, mas ocupando o papel ativo da mãe."
"à dimensão fantasística do imaginário, ela acrescenta a possibilidade de uma referência à experiência real; à dimensão realista do testemunho vivo, acrescenta a transposição para o registro imaginário, permitindo afastar-se da experiência individual para compartilhar marcas comuns - mitos ou contos de fadas, personagens de romances, tramas de filmes..."
"uma única dimensão da ficção está excluída de nossa análise: a que remete à arte literária ou cinematográfica. não é a literatura ou o cinema através da problemática das relações mãe-filha que nos interessam, mas a realidade dessas relações através do filtro da ficção."
"assim se desenha, pois, o quadro de nossa pesquisa: como aparecem as relações mãe-filha, em todos os seus aspectos e em todas as idades, quando nos afastamos das problemáticas eruditas sobre a literatura e das interrogações centradas numa visão masculina ou não-sexuada? e em que elas são específicas, isto é, não redutíveis às relações pais-filhos em geral?"
"nas relações mãe-filha, é muitas vezes difícil discriminar o que é específico de uma época e o que é transversal a todas, em outras palavras, discriminar parâmetros socioculturais de uma realidade psíquica, se não intemporal, pelo menos pouco permeável às evoluções. de modo geral, a questão da historicidade das relações mãe-filha continua em aberto. é provável que não venha a encontrar resposta, e, se encontrar, será somente caso por caso."
"[...] embora a ficção seja um excelente revelador das situações de crise, ela não trata de situações sem tensões. [...] as relações mãe-filha não são necessariamente tão problemáticas como aparecem em nossos corpus. mas ao colocar em evidência, com a ajuda da ficção, os problemas mais graves, pode-se reconstituir em negativo as condições de uma boa relação."
mais mães que mulheres e filhas-bebês
"só as crianças são mais dependentes que as mulheres, é por isso que as mães são muitas vezes tão dependentes da dependência de seus filhos em relação a elas. (ruth kluger)"
"para a menina, essa outra é também sua semelhante, ao passo que, para o menino, essa mulher é outra: é por isso que essa dependência originária não tem a mesma ressonância e não terá as mesmas consequências para cada um dos sexos."
"essa tendência ao investimento exclusivo da mãe sobre o filho tende a ser ainda mais valorizada hoje em dia, quando as mulheres, devido ao seu trabalho, são obrigadas a deixar, precocemente, que alguém de fora cuide de uma criança que, no imaginário delas, talvez nunca devesse ter saído do seio materno."
"embora evidentemente não haja uma causa única para essas depressões, pode-se perguntar se elas não têm algo a ver com as exigências exorbitantes feitas às mães: basta que se espere que quando o filho nasça elas renunciem a tudo, exceto a se preocupar do bebê, e que não se autorizem a exprimir seu ressentimento, ou até seus acessos de ódio em relação à criança, para que o entrincheiramento na depressão seja uma solução de recuo que lhes permite, por um tempo, excluir-se de tudo que lhes interessa, inclusive do filho."
" "nunca sem minha filha!": esta parece ser a nova palavra de ordem das mães "mais mães que mulheres", que encontram sua razão de viver na simbiose com uma filha-espelho, tendo o pai sido reduzido, no melhor dos casos, à transparência ou - no pior - à condição de obstáculo, ou de inimigo a ser abatido."
mais mães que mulheres e menininhas
"o lugar passa então da qual ele vai embora, expulso pela mãe e filha: uma mãe que, ao tentar fazer da filha uma atriz, uma vedete, uma heroína de filme que nos conta essa história; e uma filha que passa a ser apenas o joguete passivo do abuso narcisista, o objeto indefeso do todo-poderoso amor devorador da mãe. protegida pelas virtudes da maternidade, e depois de ter despachado o pai transformado em intruso, a mãe pode, sem vergonha, utilizar a criança para projetar nela suas fantasias de sucesso - glória e amor total - que ela não conseguiu realizar na sua vida de mulher.
a sombria verdade que, através do trabalho da ficção, às vezes, aparece, como um fantasma, por trás da ideal devoção das mães aos filhos é a seguinte: por trás do grito de amor das loucas de amor materno ("nunca se ama demais os filhos!") transparece o grito de guerra das mulheres sedentas de objetos para adorar, investir com um amor fusional, incluir no desejo sem fim de uma absorção sem limites no e pelo outro - adoração, fusão ou absorção que os homens não autorizam porque eles são justamente "outros" demais, portanto insuficientemente maleáveis e vulneráveis à dominação amorosa. as crianças, em contrapartida, são objetos perfeitos, cativos, passivos, totalmente dependentes, pelo menos por certo tempo."
"embora também exista dominação da mãe sobre o menino, é antes de tudo sobre a filha que ela exerce, nas formas mais obscuras e mais arcaicas, chegando às vezes à violência. obrigação de conformidade aos modelos, depreciação do sexo feminino, imposição de segredos, relatos aterrorizantes, culpabilizações e intrusões de toda ordem são suas formas mais visíveis - entre as quais a confusão das identidades constitui provavelmente uma forma mais sutil, mas ainda mais temível."
"o "abuso narcisista" da criança pelos pais e, em particular, pela mãe, é a projeção do genitor sobre a criança, cujos dons são explorados não para desenvolver seus próprios recursos, mas para satisfazer as necessidades de gratificação de um ou de ambos os pais."
"mais que para os meninos, o abuso narcisista cometido contra as meninas é também, indissociavelmente, um "abuso identitário", sendo a menina colocada num lugar que não é o seu e, correlativamente, despojada de sua própria identidade justamente por aquela que tem a responsabilidade de ajudá-la a construí-la."
"a "criança bem-dotada" não para de multiplicar as proezas na tentativa de merecer, por seus dons, um amor sempre insatisfatório, já que nunca é dirigido para ela mesma, por ela mesma - mas apenas para aquilo que ela representa, ou seja, a imagem idealizada da mãe. o "dom" da criança resulta, pois, de sua capacidade, excepcionalmente desenvolvida, de responder às expectativas da mãe abusiva. "
"acontece que essa necessidade não pode jamais ser satisfeita, porque as marcas de solicitude nunca se endereçam realmente à criança. essa insegurança afetiva, essa falta de amor engendra por sua vez uma fuga para a frente em performances cada vez mais elaboradas, porque a criança nunca cessa de tentar merecer esse amor que jamais chega até ela, já que não lhe está destinado."
"tivesse sido capaz de satisfazer, como Betty, as ambições de sua mãe, a pequena Maria de Bellissima teria visto pouco a pouco, ao longo de sua existência, a excitação da criança prodígio dar lugar à depressão que espreita os seres tão excepcionalmente bem dotas quanto profundamente clivados: clivados entre pequenez e grandeza, ódio e amor por si, interioridade do ser e exteriorização pelo fazer, obscuridade de um sofrimento secreto e luzes de uma glória oferecida em vão."
mais mães que mulheres e adolescentes
"agora, ela não está mais na intemporalidade" da infância, mas numa história - sua história - na qual precisa a todo custo avançar, decidir-se, cortar os laços, estabelecer outros: há, doravante, o que ficou para trás, inexoravelmente, e o que vem pela frente, inevitavelmente. atrás, o face-a-face familiar demais em que o ar - os outros - começou aos poucos ao faltar; na frente, o desconhecido, os laços sem outra referência senão o que ela sempre conheceu e que, imediatamente, ela corre o grande risco de tentar recriar: a fusão, a simbiose, a absorção no outro [...]"
"mas não é fácil fazer esse cut-off para se tornar uma mulher, sobretudo quando sempre se foi apenas a filha-de-sua-mãe e quando o outro - o modelo, a referência - sempre, ou quase sempre, foi apenas a mãe-de-sua-filha. Algumas nem conseguirão, por falta de pontos de apoio, por falta de uma possível identificação: de que modelo de mulher se dispõe quando só se tem diante de si uma mãe? e aquelas que conseguirem provavelmente pagarão com uma surda culpa: como se pode abandonar uma mãe que nos ama tanto?"
"Marie consegue contudo - com uma maturidade tão espantosa que parece um artificio de roteiro - explicitar o mal-estar desse enclausuramento numa relação a dois, que exclui qualquer terceiro. um dia, na intimidade do quarto, ela explode: "você acha que me dá segurança, mas não é segurança que você me dá: é pânico!...""
" "o que você espera da vida? responde!"
"não sei", responde a mãe com uma voz átona. parece ter abdicado de todo sentimento, como se deixasse a filha sentir suas emoções em seu lugar.
"sabe o que eu gostaria?", pergunta finalmente a filha. a mãe se põe de sobreaviso, acreditando reencontrar por fim seu lugar, o lugar daquela-que-dá: "o quê?"
"que você me amasse menos!", responde a filha, implacável. ela acertou o ponto mais dolorido, ao recusar, da mãe, a própria essência do vínculo delas - o amor."
" "por que você não foi dormir?", critica Marie. assim invertem-se os papéis entre acusação e defesa, no extremo oposto do "por que você chega tão tarde?" da mãe tradicional. "não consigo dormir quando você está na rua", responde a mãe, especialista em transformar sua inquietação e seu ressentimento em culpabilização."
" "te dou o dinheiro. darei um jeito de arrumar!", diz ela sem hesitar. não só não recusa ajuda para a filha se afastar dela, mas quer fazer desse dinheiro uma doação, não um empréstimo: "não vai precisar me devolver." a filha, é claro, recusa essa doação, que é apenas uma maneira de infantilizá-la, mantendo o vinculo ali mesmo onde ela busca sua emancipação: "tinha certeza de que isso ia dar problema! você me faz sentir culpada, tenta me humilhar recusando que eu te devolva!" "
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