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"aquela mãe que insiste em seguir existindo como uma realidade para ela. mais viva ainda porque odeia e ama aquela mãe com a mesma intensidade, embora só tente odiar."
"quer machucar a mãe com suas unhas até vê-la sangrar, quer quebrar uma unha no osso da mãe. e logo o remorso, o maldito remorso que sempre vem como uma gastura no estômago. sua gastrite tem nome e sobrenome e um dia se chamou útero."
"não há como escapar da carne da mãe. o útero é para sempre."
"desde criança, quando abro um livro não estou mais aqui. não é uma metáfora para mim."
"continuo sem corpo. e ela lá fora, com medo que eu vá embora, fingindo desconhecer que não posso partir. nunca pude. porque arrasto comigo o corpo dela, que me engolfa e engole."
"o que me perturba é menos denso. não escrevo como desejaria. as frases que emergem de mim não têm qualidade. será que contêm pelo menos uma verdade?"
"escrevo na esperança de que as palavras me libertem do sangue. do corpo da mãe. mas e se não existir eu além dessa mistura de carnes de mãe e de filha?"
"é isso que sempre a assusta no mundo, essa capacidade do inferno de se esconder na luz."
"(...) mas como a vida pode absorver tanto horror e seguir adiante? quer ficar catatônica porque seria bom não suportar, mas ela não é assim. ela suporta."
"como sempre, esquece onde está enquanto escreve. a escrita é um lugar que ela pode habitar. é reconfortante escrever sobre a vida dos outros."
"o tempo era confuso na minha infância. com os dias, eu acabava acreditando que havia sido sempre assim."
"não sei se foi aí que começou, mas sempre tive medo das palavras. das pronunciadas. preferia ficar ali, compartilhando o silêncio do meu pai."
"como sempre adivinha tudo, minha mãe sabe que eu escrevo. que encontrei um jeito de arrancá-la de mim sem sangrar. ela me teme um pouco agora. e eu gosto da sensação do meu pequeno poder. sou eu que conto a história, quero gritar. como sempre, silencio. como meu pai, silencio."
"minha mãe sabe. acordei com a sua voz dentro da minha cabeça. não é assim. você está contando tudo errado. eu quero dar a minha versão. eu tenho direito à minha voz nesta história. meu coração disparou e por um não tempo fiquei paralisada de medo enquanto sua voz tentava empurrar a minha para a escuridão. prometi deixá-la falar. e meus batimentos voltaram ao normal. mas menti. sou eu que falo. desta vez, é a minha voz. as palavras são todas minhas. minhas. a narradora agora sou eu. e, para ela, a história chegou ao fim."
"acho que nós, filhas, somos assim, não é? agora ela evoca a cumplicidade da mulher mais jovem. com certeza a psicóloga também tem problemas com a mãe. perdoamos tudo de quem nos deu à luz, a senhora não acha?"
"ela tinha trancado as palavras em mim antes que eu nascesse. e antes tinha trancado as palavras do meu pai. ela mesma não tinha palavras. éramos uma família sem palavras. e com um corpo só."
"quem perdeu muito sabe que há um certo alívio em não esperar nada de bom, em não desejar nada. eu era criança mas vivia como um adulto que tivesse perdido muito."
"tinham me contado que os escritores eram uma espécie de deuses. eles criavam um mundo onde podiam viver e escapavam deste pela porta dos fundos. me preparei a vida inteira para ser deus. e só o que faço agora é desinventar a mim mesma. acho que é isso. a realidade é uma ficção. e ao escrever vou quebrando essa criatura esculpida com amor e desespero. é o contrário. é preciso destruir a forma humana que está ali para alcançar a pedra."
"sempre é difícil para mim sair de casa. por mais ameaçadora que a casa seja, eu sei o quanto minha mão pode me ferir. mão, não. mãe. se sabemos o que esperar, até mesmo a dor pode ser confortadora. e eu descubro que o pior caminho é melhor que o desconhecido. quero voltar, mas seria uma derrota. fico perambulando acuada no meio daquelas tantas pessoas. ainda que eu seja mais uma ninguém a vagar sem rosto pelas rodas de livros, pelas prateleiras, tenho a sensação de ser uma penetra. tanta coisa escrita, tanta gente escrevendo. porque eu escrevo? o que eu tenho a dizer que já não tenha sido dito de milhares de maneiras diferentes? a quem interessa o meu corpo de letras?"
"cada vez que ela se rasga com aquele canivete, meu coração encolhe. vários centímetros. é quando tenho certeza de que a amo porque temo perdê-la porque não teria mais ninguém para atormentar. apenas queria que ela não precisasse se cortar."
"porque laura, como uma galinha, nunca vai muito além do quintal. sempre cisca perto de casa, perto de mim. laura é um pintinho que não vira galinha. não pode nem ir para a panela. (...) laura é sentimental, talvez. não fraca. nisso puxou ao pai. às vezes eu tenho vontade de dizer a ela: por que você não me larga de uma vez e vai viver a sua vida? mas eu não digo. não digo porque sou egoísta, e laura é tudo o que tenho. bem ou mal, só sei que tive uma vida quando vejo laura carregando suas cicatrizes pela casa."
"é engraçado como a gente quer escrever uma coisa e acaba escrevendo outra. talvez acontecesse isso com o meu pai quando me ditava as cartas. talvez seja essa explicação."
"o sol entra pelos furos da persiana. sempre entra, mesmo que pessoas como eu não acreditem em sol. prefiro a chuva, que não obriga ninguém a ser feliz."
"e gostava do ambiente, ainda gosto. eu fazia caridade, e elas me achavam uma boa mulher. é bom ser uma boa mulher, pelo menos em algum lugar. é bom estar em qualquer lugar em que a gente não precise ser a gente mesma."
"acho que você deveria apenas escrever. talvez o novo nem exista. talvez seja isso, um livro para mostrar que não existe nada novo. que tudo é velho. e não faz mal. estamos aqui e é o suficiente. você escreve e é o suficiente."
"o que será que aconteceu? ela nunca vai me dizer. entre nós as verdades nunca vieram pelas palavras. mas as verdades estão entre nós, nesse ar que ambas respiramos, naquilo que não pode ser dito, naquilo que às vezes fizemos para não ter de dizer."
"eu sei tudo o que preciso saber, pai. sempre soube tudo o que precisava saber sobre você. você está vivo, pai? você está vivo em algum lugar? será que a gente poderia tomar um café um dia desses? sinto tanta saudade."
"a mãe nunca havia pedido coisa alguma, nunca tinha se queixado, nunca nada. que mãe é esta que implora por salvação? de onde vem aquilo?"
"o que eu quero dizer é que não é porque a gente não saiba como fazer as coisas do jeito certo que a gente não ame. eu não sabia qual era o jeito certo de amar, só isso. como eu poderia?"
"eu a salvei, mas a salvei de mim mesma. fui ao mesmo tempo sua assasina e sua heroína. e acredito que é isso que todas as mães são em alguma medida."
"como será a morte? fim e pronto? fim e nada mais? fim e fui só um acidente? fim e fui só uma menina que escrevia palavras obscenas num caderno de caligrafia e uma mulher que matava bebês e uma mãe que não sabia ser mãe e uma velha que voltou a escrever porque teve medo de ser esquecida ou lembrada do jeito errado e quis deixar sua versão de uma história que não interessa a ninguém."
"agora que eu posso escolher minhas palavras e que elas não mais me violentam. eu quero que a minha última palavra seja minha. e seja viva, para viver comigo mesmo na minha morte. para eu saber que fez sentido, que algo fez sentido nesse grande mal-entendido que é uma vida."
"de repente compreendo que minha mãe vai me deixar. que não haverá mais uma mãe para odiar. e que eu não sei o que fazer da minha vida sem ela. minha mãe sempre esteve ali. por pior que ela tenha sido, foi a única que ficou."
"é isso afinal a vida. só ao morrer descobrimos que essas cenas e esses dias patéticos são grandiosos."
"eu posso sentir o que ela sente. e neste momento quero morrer com minha mãe. porque os dias sem ela que virão não fazem sentido para mim. eu não serei capaz de enxergá-los sem ela. e mesmo agora, que a amparo, que quase a carrego, sei que é ela quem me ampara e é ela quem me carrega. que só sabemos andar juntas. e que, sem ela, me faltatão pernas."
"laura, eu tenho medo de morrer. eu não quero deixar você. sabe acho que descobri agora que gosto de viver. não é irônico? e minha mãe começa a rir com um riso lento, em capítulos. as lágrimas escorrem também pelo meu rosto. vou sentir saudades, mãe. mas eu vou estar aqui. vou estar com você, até o fim. ela chora baixinho. e eu enconsto minha cabeça na dela."
"pela primeira vez eu quero que minha mãe esteja em mim. não como possessão, compreendo agora. mas como memória."
"nenhuma vida se completa. isso ela agora sabe. como a mãe, ela também vai esperar que algo se complete, mas a vida seguirá até o fim em aberto, inconclusa."
"ela não tem coragem de enfrentar o mundo da mãe sem a mãe."