• a arte de perder, elizabeth bishop.

'tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. perca um pouquinho a cada dia. aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. a arte de perder não é nenhum mistério. depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subseqüente da viagem não feita. nada disso é sério. perdi o relógio de mamãe. ah! e nem quero lembrar a perda de três casas excelentes. a arte de perder não é nenhum mistério. perdi duas cidades lindas. e um império que era meu, dois rios, e mais um continente. tenho saudade deles. mas não é nada sério. – mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (escreve!) muito sério.'

  • carlos drummond de andrade,confissão.

'não amei bastante meu semelhante, não catei o verme nem curei a sarna. só proferi algumas palavras, melodiosas, tarde , ao voltar da festa. dei sem dar e beijei sem beijo. e na meia-luz tesouros fanam-se, os mais excelentes. do que restou, como compor um homem e tudo o que ele implica de suave, de concordâncias vegetais, murmúrios de riso, entrega, amor e piedade? não amei bastante sequer a mim mesmo, contudo próximo. não amei ninguém. salvo aquele pássaro -vinha azul e doido- que se esfacelou na asa do avião.'

  • virginia woolf, the waves.

'how much better is silence; the coffee cup, the table. how much better to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the stake. let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this knife, this fork, things in themselves, myself being myself.'

  • clarice lispector, se eu fosse eu.

'quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? as vezes dá certo. mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor sentir. e não me sinto bem. experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. no entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. como? não sei. metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. e se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro. "se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. no entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. bem sei, experimentaríamos emfim em pleno a dor do mundo. e a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais'

  • alberto caeiro, quando vier a primavera.

'quando vier a primavera, se eu já estiver morto, as flores florirão da mesma maneira. e as árvores não serão menos verdes que na primavera passada. a realidade não precisa de mim. sinto uma alegria enorme ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma. se soubesse que amanhã morria e a primavera era depois de amanhã, morreria contente, porque ela era depois de amanhã. se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; e gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. por isso, se morrer agora, morro contente, porque tudo é real e tudo está certo. podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. o que for, quando for, é que será o que é.'

  • cecília meireles, lua adversa.

'tenho fases, como a lua. fases de andar escondida, fases de vir para a rua. perdição da minha vida! perdição da vida minha! tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha. fases que vão e que vêm, no secreto calendário que um astrólogo arbitrário inventou para meu uso. e roda a melancolia seu interminável fuso! não me encontro com ninguém (tenho fases, como a lua). no dia de alguém ser meu, não é dia de eu ser sua. e, quando chega esse dia, o outro desapareceu.'

mar 30 2018 ∞
jun 11 2020 +