a hora da estrela ——— clarice lispector
E achava bom ficar triste. Não desesperada, pois isso nunca ficara já que era tão modesta e simples mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica. Claro que era neurótica, não há sequer necessidade de dizer. Era uma neurose que a sustentava, meu Deus, pelo menos isso: muletas. Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de joias e roupas acetinadas - só para se mortificar um pouco. É que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro. Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. O pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde: caía em meditação inquieta, o vazio do seco domingo. Suspirava. Tinha saudade de quanto era pequena - farofa seca - e pensava que fora feliz. Na verdade por pior a infância é sempre encantada, que susto. Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim mesmo e - quem organizou a terra dos homens? Na certa mereceria um dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás, não é entrar no céu, é oblíquo na terra mesmo. […] Devo dizer que ela era doida por soldado? Pois era. Quando via um, pensava com estremecimento de prazer: será que ele vai me matar? Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra. E tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos. Mas como as roía quase até o sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e via-se o sujo preto por baixo. E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.
just kids ——— patti smith
why can't I write something that would awake the dead? that pursuit is what burns most deeply.
a câmara clara ——— roland barthes
em brecht, por uma inversão que outrora eu admirava muito, é o filho que educa (politicamente) a mãe; contudo, jamais eduquei minha mãe, jamais a converti ao que quer que fosse; em certo sentido, jamais lhe ‘falei’, jamais ‘discorri’ diante dela, para ela; pensávamos, sem nos dizer, que a insignificância ligeira da linguagem, a suspensão das imagens, devia ser o espaço mesmo do amor, sua música.
woman, native and other ——— trinh t. minh-ha
so where do you go from here? where do I go? and where does a commited woman writer go? finding a voice, searching for words and sentences: say some thing, one thing or no thing; tie/untie, read/unread, discard their forms; scrutinize the grammatical habits of your writing and decide for yourself whether they free or repress. again, order(s). shake syntax, smash the myths, and if you lose, slide on, unearth some new linguistic paths. do you surprise? do you shock? do you have a choice?
in trying to tell something, a woman is told, shredding herself into opaque words while her voice dissolves on the walls of silence.
words empty out with age. die and rise again, accordingly invested with new meanings, and always equipped with a secondhand memory.
writing: a commitment of language. the web of her gestures, like all modes of writing, denotes a historical solidarity (on the understanding that her story remains inseparable from history).
elsewhere, in every corner of the world, there exist women who, despite the threat of rejection, resolutely work toward the unlearning of institutionalized language, while staying alert to every deflect of their body compass needles.