01. É mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo

  • Os neoliberais, realistas capitalistas por excelência, celebram a destruição do espaço público, mas, contrariando suas expectativas oficiais, o Estado em Filhos da Esperança, não é dissolvido, mas apenas dissolvido às suas dimensões básicas: militares e policiais (Falo em expectativas "oficiais" porque, em sua profundidade, o neoliberalismo sempre se apoiou no Estado, apesar de tê-lo difamado ideologicamente. Isso ficou absolutamente claro durante a crise dos bancos, em 2008, quando, a convite dos ideólogos neoliberais, o Estado correu para salvar o sistema bancário).
  • O poder do realismo capitalista deriva, em parte, da maneira pela qual ele resume e consome toda história anterior. Trata-se de um efeito de seu "sistema de equivalência geral", capaz de transformar todos os objetos da cultura - quer sejam iconografia religiosa, pornografia ou O capital de Karl Marx - em valor monetário. [...] Na conversão de práticas e rituais em meros objetos estéticos, as crenças das culturas anteriores são objetivamente ironizadas, transformadas em artefatos.
  • Isso faz do capitalismo algo muito parecido com A coisa no filme homônimo de John Carpenter: uma entidade monstruosa e infinitamente plástica, capaz de metabolizar e absorver qualquer coisa com a qual entre em contato.
  • Jameson, notoriamente, declarou que o pós-modernismo é "a lógica cultural do capitalismo tardio". Ele argumentou que o fracasso do futuro era um elemento constitutivo da cena cultural pós-moderna que, como profetizou corretamente, seria dominada pelo pastiche e pela releitura.
  • Os anos 1980 foram o período no qual o realismo capitalista se estabeleceu, com muita luta, e criou raízes. Foi a época em que a doutrina de Margaret Thatcher de que "não há alternativa" - um slogan tão sucinto para o realismo capitalista quanto se poderia querer - se transformou em uma profecia autorrealizável brutal.
  • Não estamos lidando agora com a incorporação de materiais dotados de potencial subversivo, mas sim com sua "precorporação": a formatação e moldagem prévia dos desejos, aspirações e esperanças pela cultura capitalista. Prova disso, por exemplo, é o estabelecimento acomodado de zonas culturais "alternativas" ou "independentes", que repetem infinitamente gestos de rebelião e contestação como se fossem feitos pela primeira vez. "Alternativo" e "independente" não designam nada fora do mainstream; pelo contrário, são, na verdade, estilos dominantes no interior do mainstream.
  • A afinidade entre o hip hop e filmes de gangster como Scarface, O poderoso chefão, Cães de aluguel, Os bons companheiros e Pulp Fiction, emerge do argumento comum de que eles estariam despindo o mundo de ilusões sentimentalóides para mostrá-lo "como realmente é": uma guerra hobbesiana de todos contra todos, um sistema de perpétua exploração e de criminalidade generalizada.
  • Há um tipo de desmitologização a partir de um prisma machista nos trabalhos de Miller e Ellroy. Eles posam de observadores implácaveis, que se recusam a embelezar o mundo para encaixá-lo em uma ética binária, supostamente simplista, dos super-heróis de quadrinhos e dos romances de crimes clássicos.
  • "Em sua completa escuridão", escreveu Mike Davis sobre Ellroy em 1992, "não há mais luz que possa projetar sombras, e o mal se torna uma banalidade forense. O resultado se parece muito com a própria textura moral da era de Reagan-Bush: uma supersaturação de corrupção que já não provoca mais indignação ou, sequer, interesse". Essa dessensibilização, no entanto, cumpre uma função no realismo capitalista: [...] "endossar a emergência do homo reaganus". [Davis, Mike. Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.]

02. E se você convocasse um protesto e todo mundo aparecesse?

  • Como Žižek provocativamente apontou, o anticapitalismo está amplamente disseminado no capitalismo. Vez por outra acontece de o vilão dos filmes de Hollywood ser uma "corporação capitalista maligna". Longe de enfraquecer o realismo capitalista, esse anticapitalismo gestual, na realidade, reforça-o.
  • Um filme como Wall-E exemplifica o que Robert Pfaller chamou de "interpassividade": o filme performa nosso anticapitalismo para nós, nos autorizando assim a continuar consumindo impunemente. O papel da ideologia capitalista não é o de fazer a defesa explicita de nada, como a propaganda faz, mas ocultar o fato de que as operações do capital não dependem de nenhum tipo de subjetividade ou crença. [...] o capitalismo pode funcionar perfeitamente bem, em certos sentidos até melhor, sem ninguém para defendê-lo abertamente.
  • A ideologia capitalista em geral, sustenta Žižek, consiste precisamente em supervalorizar a crença - no sentido de atitude subjetiva interior - a despeito das crenças que exibimos e exteriorizamos em nossos comportamentos. Contanto que acreditemos (em nossos corações) que o capitalismo é mau, somos livres para continuar participando da troca captalista.
  • A onda de protestos desencadeados nos anos de 1960 postulava a existência de um "pai maligno", o anunciador de um princípio de realidade que (supostamente) negava de maneira cruel e arbitrária o "direito" ao gozo total. Esse pai tinha acesso a recursos ilimitados, mas de forma egoísta e insensível, guardava-os para si. No entando, não é o capitalismo, mas o próprio protesto que depende dessa figuração de pai; e um dos trunfos da atual elite global tem sido evitar a identificação com essa figura do pai avarento, mesmo que a "realidade" imposta à juventude atual seja substancialmente mais severa do que as condições contra as quais os jovens protestaram nos anos 1960.
  • Precisa-se ter em mente que o capitalismo é tanto uma estrutura impessoal hiper abstrata quanto algo que não poderia existir sem a nossa colaboração. A descrição mais gótica do capital é também a mais precisa. O capital é um parasita, um vampiro insaciável, uma epidemia zumbi; mas a carne viva que ele transforma em trabalho morto é a nossa, os zumbis que ele produz somos nós.
  • A chantagem ideológica que está por aí desde os primeiros concertos do Live Aid (festival de rock realizado em 1985 com o objetivo de angariar fundos para combater a fome na Etiópia) insiste que "indivíduos caridosos" podem acabar diretamente com a foma, sem precisar de nenhum tipo de solução política ou de reorganização sistêmica. [...] O ponto não era oferecer uma alternativa ao capitalismo - ao contrário: [...] consistia em uma aceitação "realista" do capitalismo como único jogo a ser jogado. O objetivo era apenas garantir que partes dos lucros de transações específicas fossem destinados a boas causas. A fantasia era que o consumismo, longe de estar intrisecamente implicado na desigualdade global sistêmica, poderia, ao contrário, resolvê-lo. Tudo que precisávamos fazer era comprar os produtos certos.

03. O capitalismo e o Real

  • O realismo capitalista, como o entendo, não pode ser confinado à arte ou à maneira quase propagandísta pela qual a publicidade funciona. Trata-se mais de uma atmosfera penetrante, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação - agindo como uma espécie de barreira invisível, limitando o pensamento e a ação.
  • Uma posição ideológica nunca é realmente bem-sucedida até ser naturalizada, e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor, e não como um fato. Não por acaso, o neoliberalismo tem procurado acabar com a própria categoria de valor em um sentido ético. Ao longo dos últimos trinta anos, o realismo capitalista implantou com sucesso uma "ontologia empresarial", na qual é simplesmente óbvio que tudo na sociedade, incluindo saúde e educação, devem ser administrados como uma empresa.
  • Como Alenka Zupančič explica, o postulado psicanalítico de um princípio de realidade nos convida a desconfiar de qualquer realidade que se apresente como natural. "O princípio de realidade", escreve Zupančič, "não é um tipo de estado natural associado ao modo de ser das coisas... O princípio de realidade é ele mesmo ideologicamente mediado; pode-se até mesmo afirmar que constitui o grau mais elevado de ideologia, a ideologia que se apresenta como fato empírico (ou biológico, econômico), necessidade (e que tendemos a perceber como não ideológica). É precisamente aqui que devemos ficar mais atentos ao funcionamento da ideologia." [Zupančič, Alenka. The shortest shadow: Nietzsche's philosophy of the two, 2003.]
  • Para Lacan, o Real é o que qualquer "realidade" deve suprimir; aliás, a própria realidade só se constitui por meio dessa repressão. O Real é um x irrepresentável, um vazio traumático que só pode ser vislumbrado nas fraturas e inconsistências no campo da realidade aparente. Portanto, uma estratégia contra o realismo capitalista envolve invocar o Real subjacente à realidade que o capitalismo nos apresenta.
  • A importância da crítica verde é que ela sugere que, longe de ser o único sistema político-econômico viável, o capitalismo está na verdade destinado a destruir as condições ecológicas das quais dependem o ser humano. A relação entre capitalismo e desastre ecológico não é acidental, e nem uma mera coincidência: "a necessidade constante de um mercado em expansão" por parte do capital, seu "fetiche pelo crescimento", mostra que o capitalismo, por sua própria natureza, se opõe a qualquer noção de sustentabilidade.
  • A "epidemia de doença mental" nas sociedades capitalistas deveria sugerir que, ao invés de ser o único sistema que funciona, o capitalismo é inerentemente disfuncional, e o custo para que ele pareça funcionar é demasiado alto.

04. Impotência reflexiva, imobilização e comunismo liberal

  • A privatização destes problemas - tratando-os como causados por desequilíbrios químicos na neurologia do indíviduo e/ou por seu histórico familiar - já descarta de início qualquer questionamento sobre sua causa social sistêmica.
  • Muitos jovens estudantes que conheci pareciam estar em um estado que chamaria de hedonia depressiva. A depressão é habitualmente caracterizada como um estado não-hedônico, mas a condição a qual me refiro aqui é constituída não tanto por uma incapacidade em se obter prazer e mais pela incapacidade de fazer qualquer coisa senão buscar prazer.
  • Estamos lidando aqui não apenas com o torpor adolescente de sempre, mas com o desencontro entre uma "New Flesh" (A "nova carne (humana)" é uma expressão usadas por Max Renn, personagem de James Woods no clássico do gênero "body horror" Videodrome (1983), de David Cronenberg. Em oposição à "velha carne", a "nova carne" seria um estágio humano posterior, sexualmente hiperestimulado e diretamente incorporada aos meios de comunicação) pós-literária - que é "conectada demais para se concentrar" - e a lógica de confinamento e concentração dos sistemas disciplinares em decadência.
  • A consequência de estar capturado na matriz de entretenimento é uma interpassividade ansiosa e agitada; uma inabilidade em concentrar-se ou manter o foco. A incapacidade dos alunos em ligar a falta de foco, no presente, com maus resultados no futuro, a incapacidade de sintetizar o tempo em qualquer tipo de narrativa coerente é sintomático de algo mais do que mera desmotivação.
  • Jameson observou que a teoria lacaniana acerca da esquizofrenia oferece um "modelo estético sugestivo" para compreender a fragmentação da subjetividade em face à emergência do complexo da indpustria do entretenimento. "Com o colapso da cadeia significante", Jameson resume, "o esquizofrênico lacaniano é reduzido a uma experiência da materialidade pura dos significantes, ou, em outras palavras, a uma série de presentes atemporais, puros e desconectados". [Jameson, Fredric. Postmodernism and Consumer Society, 1982.]
  • Se algo como um transtorno de déficit de atenção e hiperatividade for uma patologia, então é uma patologia do capitalismo tardio - a consequência de estar conectado aos circuitos de entretenimento-controle de uma cultura de consumo hipermediada. De modo semelhante, o que chamamos de dislexia pode em muitos casos consistir em uma pós-lexia: os adolescentes processam os dados imageticamente densos do capital com grande efetividade sem nenhuma necessidade de leitura - reconhecimento de slogans é o bastante para navegar no plano informacional de internet-celular-publicação. "A escrita nunca foi o forte do capitalismo. O capitalismo é profundamente iletrado", afirmaram Deleuze e Guattari no Anti-Édipo. "A linguagem eletrônica não passa pela voz ou pela escrita: o processamento de dados se dá perfeitamente sem ambas". [Deleuze, Gilles e Guatarri, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. (1972)]
  • Nesse sentido, longe de ser algo como uma torre de marfim a salvo do "mundo real", a educação é a sala de máquinas da reprodução da realidade social, onde se confrontam diretamente as inconsistências do campo social capitalista.
  • Deleuze diz que sociedades de controle são baseadas mais na dívida do que no aprisionamento; mas há um sentido no sistema educacional atual em, ao mesmo tempo, endividar e aprisionar os estudantes. Pague pela sua própria exploração é no que insiste essa lógica - fique endividado para que no final você acabe no mesmo McEmprego que teria caso tivesse largado a escola aos dezesseis...
  • O que é preciso descobrir é um modo de sair do par de opostos binário da motivação/desmotivação, de maneira que a desidentificação em relação ao programa de controle possa ser algo diferente da apatia abatida. Uma estratégia seria alterar o terreno político - mover-se para além do foco tradicional dos sindicatos nos salários em direção às formas de mal-estar específicas do pós-fordismo.

05. 6 de outubro de 1979: "não se apegue a nada"

  • O slogan que resume essas novas condições é "não há longo prazo". Enquanto anteriormente os trabalhadores podiam aprender um único conjunto de habilidades com a expectativa de assim galgar posições em uma rígida hierarquia organizacional, agora se espera que periodicamente adquiram novas habilidades enquanto pulam de posto em posto, vagando de empresa em empresa. À medida que organização do trabalho é descentralizada, com redes horizontais tomando o lugar de uma pirâmide hierárquica, atribui-se cada vez mais valor à "flexibilidade".
  • A situação da família no capitalismo pós-fordista é contraditória na exata medida tal como o marxismo tradicional havia previsto: o capitalismo precisa da família (como uma ferramenta essencial de cuidado e reprodução da mão-de-obra; um bálsamo para as feridas psíquicas infligidas pela anarquia das condições socioeconômicas), ao mesmo tempo em que a sabota (negando aos pais a possibilidade de passar mais tempo com os filhos; impondo um estresse intolerável aos casais na medida em que eles se tornam a fonte exclusiva de consolo afetivo um para com o outro).
  • Trabalho e vida tornam-se inseparáveis. O capital te acompanha até nos sonhos. [...] Para funcionar com eficiência como um componente do modo de produção just-in-time, é necessário desenvolver uma capacidade de responder a eventos imprevisíveis, é preciso aprender a viver em condições de total instabilidade, de "precaridade", para usar um neologismo horroroso. Períodos de trabalho alternam-se com dias de desemprego. De repente, você se vê preso em uma série de empregos de curto prazo, impossibilitando de planejar o futuro.
  • Se a esquizofrenia, conforme afirmam Deleuze e Guattari, é a condição que demarca os limites exteriores do capitalismo, o transtorno bipolar é a patologia mental própria ao "interior" do capitalismo. Com seus incessáveis ciclos de auge e depressão, o capitalismo é, em si, fundamental e irredutivamente bipolar, oscilando entre a excitação maníaca incontrolada (a exuberância irracional das "bolhas") e quedas depressivas (o termo "depressão econômica" não é à toa). O capitalismo alimenta e reproduz as oscilações de humor da população em um nível nunca antes visto em outro sistema social.
  • É óbvio que toda doença mental tem uma instância neurológica, mas isso não diz nada sobre a sua causa. Se é verdade que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, o que ainda resta a ser explicado são as razões pelas quais indivíduos em específico apresentam tais níveis, o que requereria uma explicação político-social. A tarefa de repolitizar a saúde mental é urgente se a esquerda deseja desafiar o capitalismo realista.
oct 19 2020 ∞
dec 14 2020 +