• “um dia vou compreender, ehud / compreender o quê? / isso de vida e morte, esses porquês”
  • “queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o tempo.”
  • “...por não acreditar na finitude me perdia no absoluto infinito”
  • “também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nesta vila onde moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, o que é ir e vir, para onde ehud, o que são essas senhoras velhas, os ganidos da infância, os homens curvos, o que pensam de si mesmos os tolos, as crianças, o que é pensar, o que é nítido, sonoro, o que é som, trinado, urro, grito, o que é asa hen?”
  • “ardi diante do lá fora, bebi o ar, as cores, as nuances, parei de respirar diante de uns ocres, umas fibras de folha, uns pardos pequeninos, umas plumas que caíam do telhado, branco-cinza, cinza-pedra, cinza-metal espelhado, e tendo visto, tendo sido quem fui, sou esta agora? como foi possível ter sido hillé, vasta, afundando os dedos na matéria do mundo, e tendo sido, perder essa que era, e ser hoje quem é?”
  • “não estou bem, ehud / ninguém está bem, estamos todos morrendo”
  • “não pactuo com as gentes, com o mundo, não há um sol de ouro no lá fora...”
  • “o que é paixão? o que é sombra? eu mesmo te pergunto e eu mesmo te respondo: hillé, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de emoções, escarlate sobre a tua vida, paixão é esse aberto do teu peito, e também seu deserto. e sombra, hillé, é nosso passo, nossa desesperançada subida.”
  • “e depois vi os olhos dos homens, fúria e pompa, e mil perguntas mortas e pombas rodeando um oco e vi um túnel extenso forrado de penugem, asas e olhos, caminhei dentro do olho dos homens, um mugido de medos garras sangrentas segurando ouro, geografias do nada, frias, álgidas, vórtices de gentes, os beiços secos, as costelas á mostra, e rodeando o vórtice homens engalanados fraque e cartola, de seus peitos duros saíam palavras mentira, engodo, morte, hipocrisia,...”
  • “deverias ter casado com outro / por que? / esses doutos, falantes, esses da filosofia, ai, devemos nos amar, hillé, para sempre, eu te dizia: tu tens vinte agora, eu vinte e cinco, pensa tudo isso não vai voltar, não terás mais vinte nem eu vinte e cinco, teremos cinquenta cinquenta e cinco, e vais ficar triste de teres perdido o tempo com perguntas, pensa como serás aos sessenta. eu estarei morto. / por que? / causa mortis? acúmulo de perguntas de sua mulher hillé.”
  • “que o homem tenha um cérebro sim, mas que nunca alcance, que sinta amor sim mas nunca fique pleno, que intua sim meu existir mas que jamais conheça a raiz do meu mais ínfimo gesto, que sinta paroxismo de ódio e de pavor a tal ponto que se consuma e assim me liberte, que aos poucos deseje nunca mais procriar e coma o cu do outro, que rasteje faminto de todos os sentidos, que apodreça, homem, que apodreças, e decomposto, corpo vivo de vermes, depois urna de cinza, que os teus pares te esqueçam, que eu me esqueça e focinhe a eternidade à procura de uma melhor ideia, de uma nova desengonçada geometria, mais êxtase para a minha plenitude de matéria, licores e ostras”
  • “tô olhando o pulmão. estufa e espreme. tudo entra dentro de mim, tudo sai. não tem nada que só entra? não. e deus? deus entra e sai, ehud?”
  • “por que o ouro é ouro? por que o dinheiro é dinheiro? por que me chamo hillé e estou na terra? e aprendi o nome das coisas, das gentes, deve haver muita coisa sem nome, milhares de coisas sem nome, e nem porisso elas deixam de ser o que são, eu se não fosse hillé seria quem? alguém olhando e sentindo o mundo”
  • “o esfarinhado no corpo da alma agora, papéis sobre a mesa, palavras grudadas à página, garras, frias meu deus, nada me entra na alma, palavras grudadas à página, nenhuma se solta para agarrar meu coração, tantos livros e nada no meu peito, tantas verdades e nenhuma em mim, o ouro das verdades onde está? que coisas procurei? que sofrido em mim se fez matéria viva?”
  • “viver é afundar-se em cada caminhada,...”
  • “perguntas, perguntas, como se fosse simples isso de amar, como se o peito soubesse desse adorno, como posso saber se a alma não compreende?”
  • “me deitei ao teu lado na tua agonia, escutei verdades e vazios.”
  • “que amor é esse que empurra a cabeça do outro na privada e deixa a salvo pela eternidade sua própria cabeça?
  • “hoje convivo com derrelição, com a senhora d, seu grandiloquente lá de dentro, seu sempre ficar à frente de um outro que não a escuta, posta-se diante dele de todos os modos, velha idiota. mãos na cintura, é a hora dos tamancos: então, porco-menino, estou aqui em trevas, em miséria, acelerada na veia e na víscera, então, é bom estar a salvo dos piolhentos como eu mesma?”
  • “hei de estar contigo, com teus nós, teu rosto de maçãs, bravias, duras, morta sim é que estarei inteira, acabada, pronta como fui pensada pelo inominável tão desrosteado, morta serei fiel a um pensado que eu não soube ser, morta talvez tenha a cor que sempre quis, um vermelho urucum, ou um vermelho ainda sem nome tijolês-morango-sépia e sombra, a teu lado eu cromo feito em escarlatim, acabados nós dois, perfeitíssimos porque mortos, as mãos numa entrelaçadura de muito luzimento, mão minha que tocou teu corpo luxesco, comprido, teu corpo uma brilhância incircunscritível, tão doce para minha língua muito em timidez, mais doce ainda na corriqueirice dos dias, puro meloso depois, tua boca em mim, cheia de colibris tua boca, mortos um dia os dois, atados, um irrompível eterno, as gentes vão olhar abrindo os olhos em boca de poço.”
  • “como cê chama? / me chamam de porco-menino. / por quê? / porque eu gosto de porcos. gosto de gente também.”
jan 31 2017 ∞
feb 1 2017 +