• “até agora achar-me era já ter uma ideia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver.” pág. 10
  • “mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo — quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.” pág. 11
  • “o que eu era antes não me era bom. mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. de meu próprio mal eu havia criado um bem futuro.” pág. 11
  • “embora eu saiba que o horror — o horror sou eu diante das coisas.” pág. 17
  • “não tenho uma palavra a dizer. por que não me calo, então? mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. a palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.” pág. 18
  • “vi, sim. vi, e me assustei com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que ele é tão vivo que, para admitir que estou tão viva quanto ele — e minha pior descoberta é que estou tão viva quanto ele — terei que alçar minha consciência de vida exterior a um ponto de crime contra a minha vida pessoal.” pág. 20
  • “eu nascera sem missão, minha natureza não me impunha nenhuma; e sempre tive a mão bastante delicada para não me impor um papel.” pág. 27
  • “dois minutos depois de nascer eu já havia perdido as minhas origens.” pág. 27
  • “nenhuma figura tinha ligação com a outra, e as três não formavam um grupo: cada figura olhava para a frente, como se nunca tivesse olhado para o lado, como se nunca tivesse visto a outra e não soubesse que ao lado existia alguém.” pág. 39
  • “...uma espécie de ódio isento, o pior ódio: o indiferente. não um ódio que me individualizasse mas apenas a falta de misericórdia.” pág. 40
  • “o quarto era o oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha ironia serena, de minha doce e isenta ironia: era uma violentacão das minhas aspas, das aspas que faziam de mim uma citação de mim. o quarto era o retrato de um estômago vazio.” pág. 41-42
  • “a lembrança de minha pobreza em criança, com percevejos, goteiras, baratas e ratos, era de como um meu passado pré-histórico, eu já havia vivido com os primeiros bichos da terra.” pág. 47
  • “eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar.” pág. 52
  • “abria-se em mim, com uma lentidão de portas de pedra, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada. e que seria a mesma em mim! se eu tivesse coragem de abandonar... de abandonar meus sentimentos? se eu tivesse coragem de abandonar a esperança.” pág. 57
  • “— segura a minha mão, porque sinto que estou indo. estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua. não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida — e, através da barata que mesmo agora revejo, através dessa amostra de calmo horror vivo, tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança.” pág. 59
  • “eu chegara ao nada, e o nada era vivo é úmido.” pág. 60
  • “se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.” pág. 62
  • “com reverência eu temia a existência do mundo para mim.” pág. 62
  • “a vida é tão contínua que nós a dividimos em etapas, e a uma delas chamamos de morte.” pág. 64
  • “...sou cada pedaço infernal de mim...” pág. 64
  • “perdão é um atributo da matéria viva.” pág. 65
  • “não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com os seus planetas e baratas.” pág. 66
  • “o mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico.” pág. 68
  • “eu me sentia imunda como a bíblia fala dos imundos. por que foi que a bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista de animais imundos e proibidos? por que se, como os outros, também eles haviam sido criados? e por que o imundo era proibido? eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.” pág. 70
  • “eles dizem tudo, a bíblia, eles dizem tudo — mas se eu entender o que eles dizem, eles mesmos me chamarão de enlouquecida.” pág. 71
  • “...porque não sei mais o sentido de amor como antes eu pensava que sabia.” pág. 86
  • “lembrei-me de ti, quando beijara teu rosto de homem, devagar, devagar beijara, e quando chegará o momento de beijar teus olhos — lembrei-me de que então eu havia sentido o sal na minha boca, e que o sal de lágrimas nos teus olhos era o meu amor por ti. mas, o que mais me havia ligado em susto de amor, fora, no fundo do fundo do sal, tua substância insossa e inocente e infantil: ao meu beijo tua vida mais profundamente insípida me era dada, e beijar teu rosto era insosso e ocupado trabalho paciente de amor, era mulher tecendo um homem, assim como me havias tecido, neutro artesanato de vida.” pág. 88
  • “vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. de como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir — nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.” pág. 97
  • “estaria eu vivendo, não a verdade, mas o mito da verdade?” pág. 99
  • “pois o inexpressivo é diabólico. se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco. se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em si próprio — o demoníaco é antes do humano. e se a pessoa vê essa atualidade, ela se queima como se visse o deus. a vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.” pág. 100
  • “...porque naquele mundo que eu vivia não existe piedade nem esperança.” pág. 101
  • “e o inferno não é a tortura da dor! é a tortura de uma alegria.” pág. 101
  • “e, como o silêncio julgou a minha imobilidade como sendo a de uma morta, todos esqueceram-se de mim, foram embora sem me retirarem, e, julgada morta, fiquei assistindo.” pág. 106
  • “a noite é o nosso estado latente.” pág. 114
  • “..., pois não sou adulta bastante para saber usar uma verdade sem me destruir.” pág. 115
  • “pois em mim mesma eu vi como é o inferno.” pág. 119
  • “eu via que o inferno era isso: a aceitação cruel da dor, a solene falta de piedade pelo próprio destino, amar mais o ritual de vida que a si próprio — esse era o inferno, onde quem comia a cara viva do outro espojava-se na alegria da dor.” pág. 120
  • “só a misericórdia do deus poderia me tirar da terrível alegria indiferente em que eu me banhava, toda plena.” pág. 125
  • “mas agora, que eu sabia que minha alegria fora o sofrimento, eu me perguntava se estava fugindo para um deus por não suportar minha humanidade. pois precisava de alguém que não fosse mesquinho como eu, alguém que fosse tão mais largo do que eu a ponto de admitir a minha desgraça sem usar sequer a piedade e o consolo — alguém que fosse, que fosse! e não, como eu, uma acusadora da natureza, não como eu, uma espantada pela força de meus próprios ódios e amores.” pág. 132
  • “amor neutro. o neutro soprava. eu estava atingindo o que havia procurado a vida toda: aquilo que é a identidade mais última e que eu havia chamado de inexpressivo. fora isso o que sempre estivera nos meus olhos no retrato: uma alegria inexpressiva, um prazer que não sabe que é prazer — um prazer delicado demais para a minha grossa humanidade que sempre fora feita de conceitos grossos.” pág. 133
  • “o inferno pelo qual eu passara — como te dizer? — fora o inferno que vem do amor. ah, as pessoas põem a ideia de pecado em sexo. mas como é inocente e infantil esse pecado. o inferno mesmo é o do amor. amor é a experiência de um perigo de pecado maior — é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior. sexo é o susto de uma criança. mas como falarei para mim mesma do amor que eu agora sabia?” pág. 133
  • “e agora eu estava como diante dele e não entendia — estava inutilmente de pé diante dele, e era de novo diante do nada. a mim, como a todo o mundo, me fora dado tudo, mas eu quisera mais: quisera saber desse tudo. e vendera a minha alma para saber. mas agora eu entendia que não a vendera ao demônio, mas muito mais perigosamente: a deus. que me deixara ver. pois ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação de um enigma é a repetição do enigma. o que és? e a resposta é: és. o que existes? e a resposta é: o que existes. eu tinha a capacidade da pergunta, mas não a de ouvir a resposta.” pág. 134
  • “mas era como uma pessoa que, tendo nascido cega e não tendo ninguém a seu lado que tivesse tido visão, essa pessoa não pudesse sequer formular uma pergunta sobre a visão: ela não saberia que existia ver. mas, como na verdade existia a visão, mesmo que essa pessoa em si mesma não a soubesse e nem tivesse ouvido falar, essa pessoa estaria parada, inquieta, atenta, sem saber perguntar sobre o que não sabia que existe — ela sentiria falta do que deveria ser eu.” pág. 135
  • “...por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita.” pág. 146
  • “a esperança é um filho ainda não nascido, só prometido, e isso machuca.” pág. 147
  • “não é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. a flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. a via láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. e nós sabemos deus. e o que precisamos dele, extraímos. (não sei o que chamo de deus, mas assim pode ser chamado.) se só sabemos muito pouco de deus, é porque precisamos pouco: só temos dele o que fatalmente nos basta, só temos de deus o que cabe em nós. (a nostalgia não é do deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível — minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.)” pág. 150
  • “o leite da vaca, nós o bebemos. e se a vaca não deixa, usamos de violência. (na vida e na morte tudo é lítico, viver é sempre questão de vida-e-morte.) com deus a gente também pode abrir caminho pela violência. ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós, ele nos escolhe e nos violenta.” pág. 151
  • “e ele não só deixa, como necessita ser usado, ser usado é um modo de ser compreendido.” pág. 152
  • “toda a minha luta fraudulenta vinha de eu não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade.” pág. 153
  • “— tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. eras a monotonia de meu amor eterno, e eu não sabia. eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados. o que era? era como a água escorrendo numa fonte de pedra, e os anos demarcados na lisura da pedra, o musgo entreaberto pelo fio d’água correndo, e a nuvem no alto, e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado, e o silêncio no voo dos mosquitos. e o presente disponível. e minha libertação lentamente entediada, a fartura, a fartura do corpo que não pede e não precisa.” pág. 155
  • “também não quero a minha sensibilidade porque ela faz bonito; e poderei prescindir do céu se movendo em nuvens? e da flor? não quero o amor bonito. não quero a meia-luz, não quero a cara benfeita, não quero o expressivo. quero o inexpressivo. quero o inumano dentro da pessoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais.” pág. 157-158
  • “quero o material das coisas. a humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.” pág. 158
  • “— aguenta eu te dizer que deus não é bonito. e isto porque ele não é nem um resultado nem uma conclusão, e tudo o que a gente acha bonito é às vezes apenas porque já está concluído. mas o que hoje é feio será daqui a séculos visto como beleza, porque terá completado um de seus movimentos.” pág. 159
  • “é um amor muito maior que estou exigindo de mim — é uma vida tão maior que não tem sequer beleza.” pág. 162
  • “ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. o amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. o amor já está, está sempre. falta apenas o golpe da graça — que se chama paixão.” pág. 170
  • “quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? e a resposta é: não é só isto, é exatamente isto.” pág. 173
  • “tenho avidez pelo mundo, tenho desejos fortes e definidos, hoje de noite irei dançar e comer, não usarei o vestido azul, mas o preto e branco. mas ao mesmo tempo não preciso de nada. não preciso sequer que uma árvore exista. eu sei agora de um modo que prescinde de tudo — e também de amor, de natureza, de objetos. um modo que prescinde de mim.” pág. 173-174
  • “assim como houve o momento em que vi que a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a mulher de todas as mulheres.” pág. 174
  • “a gradual deseroização de si mesmo é o verdadeiro trabalho que se labora sob o aparente trabalho, a vida é uma missão secreta. tão secreta é a verdadeira vida que nem a mim, que morro dela, me pode ser confiada a senha, morro sem saber de quê. e o segredo é tal que, somente se a missão chegar a se cumprir é que, por um relance, percebo que nasci incumbida — toda vida é uma missão secreta.” pág. 175
  • “a realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio.” pág. 176
  • “enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. por não ser, eu era. até o fim daquilo que eu não era, eu era. o que não sou eu, eu sou. tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior — é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido. da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos. mas agora, eu era muito menos que humana — e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano.” pág. 178-179
  • “e tal entrega é o único ultrapassamento que não me exclui. eu estava agora tão maior que já não me via mais. tão grande como uma paisagem ao longe. eu era ao longe. mas perceptível nas minhas mais últimas montanhas e nos meus mais remotos rios: a atualidade simultânea não me assustava mais, e na mais última extremidade de mim eu podia enfim sorrir sem nem ao menos sorrir. enfim eu me estendia para além de minha sensibilidade.” pág. 179
  • “o mundo independia de mim — esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. a vida se me é, e eu não entendo o que digo. e então adoro. — — — — — —” pág. 179
jan 2 2017 ∞
jan 23 2018 +