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  • “conta-se a ela, em muitos detalhes, a história daquela que, ao falar de sua vulva, costuma dizer que, graças a essa bússola, consegue navegar do nascente ao poente.”
  • “em algum lugar há uma sereia. ela tem o corpo verde coberto por escamas, o rosto descoberto, a parte inferior dos braços escarlate. às vezes começa a cantar. dizem que, de seu canto, se escuta apenas um O contínuo. isso faz com que o canto evoque para elas, como tudo o que lembra o O, o zero ou o círculo, o anel vulvar.”
  • “elas dizem que expõem seu sexo para que o sol se reflita nele como em um espelho. dizem que retêm seu brilho. dizem que os pelos pubianos são como uma teia de aranha que captura os raios.”
  • “elas dizem que, no feminário, a glande e o corpo do clitóris são descritos como encapuzados. está escrito que o prepúcio na base da glande pode se mover ao longo do órgão, provocando uma sensação viva de prazer. dizem que o clitóris é um órgão erétil. está escrito que ele se bifurca para a direita e para a esquerda, que ele se inclina, prologando-se em dois corpos eréteis apoiados no osso pubiano. esses dois corpos não são visíveis. o conjunto forma uma zona erógena intensa, que irradia todo o sexo, fazendo dele um órgão ávido por prazer. elas o comparam ao mercúrio, também chamado de prata viva devido à prontidão para se espalhar, se propagar e mudar de forma.”
  • “[...], eu te saúdo, grande Amaterasu, em nome de nossa mãe, em nome daquelas que estão por vir. que venha nosso reino. que esta ordem seja rompida. que os bons e os maus sejam abatidos.”
  • “elas seguem, não há anterior, não há posterior. elas avançam, não há futuro, não há passado.”
  • “elas dizem que o clitóris foi comparado a um caroço de cereja, um broto, uma muda de planta, um gergelim descascado, uma amêndoa, uma baga de murta, um dardo, um cilindro de fechadura. dizem que os grandes lábios foram comparados às metades de uma concha. dizem que a face oculta das ninfas foi comparada à púrpura de Sidon, ao coral dos trópicos. dizem que a lubrificação foi comparada à agua do mar lodada e salgada. [...] dizem que foi escrito que as vulvas são armadilhas tornos pinças. dizem que o monte pubiano foi comparado à proa de um barco à sua dianteira a uma concha pente-de-vênus. dizem que as vulvas foram comparadas a damascos romãs figos rosas cravos peônias margaridas. dizem que essas comparações podem ser recitadas como uma ladainha.”
  • “o velocino de ouro é um dos nomes dados aos pelos que recobrem o púbis. [...] dizem que a ferradura, uma representação vulvar, foi por muito tempo considerada um amuleto de sorte. e que as figuras mais antigas para descrever as vulvas se assemelham a ferraduras. dizem que, na verdade, elas são designadas nas paredes das grutas paleolíticas por meio de tais desenhos. [...] as buscas pelo graal foram tentativas singulares e únicas de descrever o zero o círculo o anel o cálice esférico que contém o sangue.”
  • “Sophie Ménade diz: sol que aterroriza e encanta inseto multicor, iridescente você se consome na memória noturna sexo reluzente o círculo é seu símbolo por toda a eternidade você é por toda a eternidade você será. ao som dessas palavras, elas começam a dançar, golpeando o chão com os pés. elas começam uma dança circular, batendo palmas, entoando um canto em que nenhuma frase lógica é dita.”
  • “elas dizem que apreendem seus corpos na totalidade. dizem que não privilegiam nenhuma das partes sob o pretexto de ela ter sido, outrora, objeto de proibição. não querem ser prisioneiras da própria ideologia. dizem que não reuniram e não desenvolveram os símbolos que, nos primórdios, foram necessários para evidenciar sua força. por exemplo, não comparam as vulvas ao sol à lua às estrelas. elas não dizem que as vulvas são como sóis negros na noite brilhante.”
  • “elas não dizem que as vulvas, em suas formas elípticas, são comparáveis aos sóis, aos planetas, às incontáveis galáxias. não dizem que os movimentos giratórios são como vulvas. não dizem que as vulvas são formas primordiais que, enquanto tais, descrevem o mundo em todo o seu espaço, todo o seu movimento. elas não criam em seus discursos figuras convencionais a partir desses símbolos.”
  • “elas não utilizam hipérboles nem metáforas para falar de seu sexo, não operam por acumulações ou gradações. não recitam longas litanias movidas por uma imprecação infinita. não se esforçam para multiplicar as lacunas fazendo com que, em seu conjunto, signifiquem um lapso voluntário. elas dizem que todas essas formas designam uma linguagem ultrapassada. dizem que é preciso recomeçar. dizem que uma ventania está varrendo a terra. dizem que o sol sairá.”
  • “o sistema é fechado. nenhum raio partindo do centro permitirá sua expansão ou explosão. ao mesmo tempo, ele é ilimitado, a justaposição dos círculos que vão se expandindo configura todas as revoluções possíveis. é virtualmente a esfera infinita cujo centro está em todo lugar, a circunferência em lugar nenhum.”
  • “a história contada por Emily Norton se passa no tempo em que todos os detalhes de um nascimento são cerimoniosamente regulados. quando a criança nasce, a parteira grita como as combatentes de guerra. isso significa que, como guerreira, a mãe foi vencedora e capturou uma criança. por cima do ombro de Emily Norton, elas contemplam as efígies das mulheres com a boca inteiramente aberta, estridentes, acocoradas com a cabeça da criança entre as coxas.”
  • “elas dizem que, tendo chegado até aqui, devem examinar o princípio que as guiou. elas dizem que não precisam extrair dos símbolos a sua força. dizem que, de agora em diante, o que elas são não pode mais ser comprometido e que, para isso, é preciso parar de exaltar as vulvas. dizem que devem romper o último vínculo que as associa a uma cultura morta. dizem que todo símbolo que exalta o corpo fragmentado é temporário e deve desaparecer. foi assim em outros tempos. elas avançam, corpos íntegros por princípio, caminhando juntas por um outro mundo.”
  • “elas dizem que foram comparadas à terra ao mar às lágrimas ao que é úmido ao que é negro ao que não queima ao que é negativo àquelas que se rendem sem lutar. dizem que essa concepção se deve a um raciocínio mecanicista que põe em jogo uma série de termos sistematicamente relacionados a termos opostos. seus esquemas são tão grosseiros que uma simples lembrança as faz cair na risada. elas dizem que também podem ser comparadas ao céu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposição as galáxias aos planetas às estrelas aos sóis àquilo que queima àquelas que lutam com violência àquelas que não se rendem jamais. elas zombam desse assunto, dizem que é como ir de Cila a Caríbdis, evitar uma ideologia religiosa para adotar outra, elas dizem que o que há em comum entre as duas é que ambas não estão mais em vigor.”
  • “elas dizem que aprenderam a contar com a própria força. dizem que sabem o que significa estarem juntas. dizem que aquelas que reivindicam uma nova língua primeiro deparam com a violência. dizem que aquelas que querem transformar o mundo primeiro se apoderam de fuzis. dizem que começam do zero. dizem que um novo mundo está surgindo.”
  • “Elsa Brauer diz algo como: houve uma época em que você não era escrava, lembre-se disso. você saiu sozinha, rindo, lavou o ventre desnudo. você diz que perdeu a memória, lembre-se disso. as rosas selvagens florescem nos bosques. você arranha a mão nos arbustos para colher as amoras e as framboesas com as quais se refresca. corre para caçar as lebres jovens que esfola com as pedras do penhasco, as despedaça e as come, quentes e sangrentas. você sabe como evitar o urso nas encostas. você conhece o medo quanto ouve os lobos se reunirem no inverno. mas pode esperar pelo amanhecer durante horas, sentada na copa das árvores. você diz que não há palavras para descrever essa época, diz que não existe. mas lembre-se. faça um esforço para se lembrar. ou, caso não consiga, invente.”
  • “falam juntas do perigo que representaram para o poder, contam como foram queimadas em piras funerárias para evitar que se encontrassem no futuro. eram capazes de dominar as tempestades, afundar frotas inteiras, destruir exércitos. eram senhoras dos peixes dos ventos das vontades. eram capazes de exercer seu poder e transferir todos os tipos de personalidade a meros animais, gansos porcos pássaros tartarugas. governaram a vida e a morte. sua potência conjunta ameaçou hierarquias sistemas governamentais autoridades. o conhecimento delas rivalizou, com êxito, com o conhecimento oficial ao qual elas não tiveram acesso, o desafiou, expôs suas faltas, o ameaçou, provou que era ineficaz. polícia nenhuma foi poderosa o suficiente para capturá-las, nenhuma delação foi oportunista o suficiente, nenhuma tortura brutal o suficiente, nenhum exército desproporcional o suficiente para destruí-las. elas, então, entoam o famoso canto que começa com: apesar de todos os males com os quais quiseram me afligir / sigo tão sólida quanto o fogão de três pés.”
  • “ouve-se um ruído que lembra o rufar de tambores em uma abóbada. os ladrilhos do teto caem um a um, revelando entre as aberturas os lambris dourados dos cômodos altos. caem as pedras dos mosaicos, balançam as vidraças, cintilam tons azuis vermelhos laranja lilás. elas continuam rindo. pegam os ladrilhos, usam-nos como mísseis, bombardeiam as estátuas que continuavam de pé em meio à confusão. empenham-se em derrubar as últimas pedras. entre pedras e pedras, estrondos de colisão. dentre elas, as feridas são retiradas. a destruição sistemática do edifício se consuma entre o clamor de gritos por socorro, enquanto a risada continua a ecoar, prolifera, toma conta do lugar. tudo termina apenas com o edifício reduzido a escombros. elas então se deitam e adormecem.”
  • “as combatentes então entoam com força o canto: que apodreçam os arrozais / para aqueles que os invadem dia e noite lutaremos sem tréguas. gritam que é melhor perecer do que viver na escravidão.”
  • “elas dizem que cultivam todas as formas de desordem. a confusão os distúrbios as discussões violentas as angústias os transtornos as discórdias as incoerências as irregularidades as divergências as complicações os desacordos as desavenças as colisões as controvérsias os debates as disputas as rixas as altercações os conflitos os desastres as catástrofes os cataclismos as perturbações as reclamações as agitações as turbulências as deflagrações o caos a anarquia.”
  • “seus movimentos são golpes de mão emboscadas ataques imprevistos seguidos de uma rápida retirada. seu objetivo não é ganhar terreno, mas destruir ao máximo o adversário aniquilar seus armamentos forçá-lo a se deslocar às cegas não lhe deixar alternativa acossá-lo sem cessar.”
  • “elas dizem que se veem em movimento, com vigor e felicidade. dizem que se ouvem gritar e cantar: o sol pode brilhar / o mundo pertence a nós.”
  • “elas dizem que não poderiam comer lebre vitelo pássaro, dizem que não poderiam comer animais, mas que homem, sim, elas poderiam comer. ele lhes diz, erguendo a cabeça com orgulho: pobres desgraçadas, se vocês o comerem, quem trabalhará nos campos, quem produzirá os alimentos, os bens de consumo, quem construirá aviões, quem irá pilotá-los, quem fornecerá espermatozoides, quem escreverá livros, quem governará? elas, então, riem, mostrando ao máximo os dentes.”
  • “elas dizem que a maioria dos homens está deitada. nem todos estão mortos. eles estão dormindo. elas dizem que saltam como potros às margens do Eurotas. aceleram o próprio movimento ao golpear a terra. balançam os cabelos como as bacantes que gostam de balançar os tirsos. elas dizem, com um movimento rápido de mãos, amarrem os cabelos esvoaçantes e batam no chão. batam no chão como uma corça, marcando ao mesmo tempo o ritmo necessário para dançar, adorando a belicosa Minerva, a guerreira, a mais valente das deusas. comecem a dançar, deem um leve passo à frente, movimentem-se em círculos, deem as mãos e façam com que cada uma acompanhe o ritmo da dança. avancem um pouco com leveza. o círculo de dançarinas deve fazer uma revolução, e elas devem olhar para todos os lados.”
  • “elas dizem: eles mantiveram você à distância, sustentaram você, colocaram você em um pedestal, constituíram você como essencialmente diferente. elas dizem: eles adoraram você como deusa, ou queimaram você nas fogueiras que atearam, ou relegaram você a trabalhar em seus quintais. elas dizem que, ao fazer isso, sempre arrastaram você pela lama com as palavras que proferiram. elas dizem que, estranhamente, o que eles exaltaram em seu discurso como diferença essencial são variantes biológicas. [...] elas dizem, sim, são os mesmos opressores dominadores, os mesmos mestres que disseram que negros e mulheres não têm coração baço fígado como eles [...] elas dizem, sim, são os mesmos opressores dominadores que dormem deitados sobre o próprio cofre para proteger o dinheiro que possuem e que tremem de medo quando a noite chega.”
  • “quando a parte mais baixa do vale se converte em um ossuário, elas acenam com os arcos acima da cabeça, gritam vitória, entoam uma canção fúnebre na qual estas palavras são ouvidas: urubu-careca irmão dos mortos urubu exerça seu ofício com esses cadáveres que lhe ofereço receba também este voto / que minhas flechas jamais alcancem seus olhos.”
  • “elas dizem: eles previram tudo, batizaram de antemão sua revolta com o nome de revolta da escrava, revolta contra a natureza, chamam de revolta você querer se apossar do que pertence a eles, o falo. elas dizem: a partir de agora, recuso-me a falar essa linguagem, recuso-me a murmurar como eles as palavras de falta, falta de pênis falta de dinheiro falta de signo falta de nome. recuso-me a pronunciar as palavras de posse e não posse. elas dizem: se eu me apoderar do mundo, que seja para me desapoderar dele imediatamente, que seja para criar novas relações entre mim e o mundo.”
  • “elas sempre questionam a atribuição de uma frase de efeito ou de um nome específico a determinada pele que consideram antiga ou, pelo contrário, recente demais para receber tal designação.”
  • “elas dizem: maldição, ele ludibriou você até expulsá-la do paraíso terreno, ele se insinuou rastejando, arrancou sua paixão pelo conhecimento em que está escrito que ela tem asas da águia os olhos da coruja os pés do dragão. [...] ele arrancou seu conhecimento, afastou sua memória daquilo que você foi, fez de você aquela que não é aquela que não fala aquela que não tem aquela que não escreve, fez de você uma criatura vil e desiludida, a amordaçou violou enganou. com estratagemas, ele invalidou sua inteligência, teceu a seu redor uma longa lista de derrotas que declarou necessárias para seu bem-estar, para sua natureza. ele inventou sua história. mas está chegando a hora em que você vai esmagar a cobra sob seus pés, está chegando a hora em que você vai poder gritar, ereta, potente e corajosa, o paraíso existe à sombra das espadas.”
  • “elas dizem: a língua que você fala envenena a glote a língua o palato os lábios. elas dizem: a língua que você fala é feita de palavras que a matam. elas dizem: a língua que você fala é feita de signos que, em si mesmos, designam as coisas das quais eles se apropriaram. aquilo em que eles não conseguiram colocar as mãos, aquilo que eles não atacaram como aves de rapina de múltiplos olhos, é o que não aparece na língua que você fala. [...] procure nas lacunas, em tudo o que não é a continuidade dos discursos deles, no zero, no O, no círculo perfeito que você inventa para aprisioná-los e derrotá-los.”
  • “elas dizem que cantam com tanta fúria que o movimento que as leva é irreversível. elas dizem que a opressão engendra o ódio. por toda parte, é possível ouvi-las gritando ódio ódio.”
  • “elas ameaçam atacam berram com os homens elas insultam zombam cospem na cara dos homens elas escarnecem provocam atazanam injuriam maltratam elas são bruscas disparam palavras duras contra os homens elas riem execram elas amaldiçoam os homens. elas são tomadas por tanta fúria que fervem tremem perdem o ar rangem os dentes espumam soltam labaredas e chamas saltam vomitam descontrolam-se. então, elas dão ordens repreendem colocam uma faca no pescoço dos homens intimidam mostram o punho para os homens surram violentam os homens dão parte de todas as queixas na mais absoluta desordem plantam aqui e ali a semente da discórdia provocam dissenso e dividem os homens alimentam caos tumulto guerras civis e os tratam como inimigos. a violência delas se desencadeia elas chegam ao clímax da fúria elas são tomadas por um entusiasmo devastador os olhares ferozes os cabelos arrepiados os punhos cerrados, rugindo correndo gritando, jogadas ao chão de raiva, alguém poderia dizer que são fêmeas que parecem com mulheres quando mortas.”
  • “elas dizem que têm a força do leão o ódio do tigre a astúcia da raposa a paciência do gato a perseverança do cavalo a tenacidade do chacal. elas dizem: serei eu a vingança universal. elas dizem: serei eu a Átila desses déspotas ferozes, razão de nossas lágrimas e sofrimentos. elas dizem: e quando, por ventura, todas quiserem ser minhas aliadas, cada uma delas será Nero e também incendiará Roma. elas dizem: guerra, sigamos! elas dizem: guerra, avante! elas dizem que, uma vez que tiverem suas armas em mãos, não as soltarão. elas dizem que vão sacudir o mundo tal como os raios e trovões.”
  • “elas dizem que a guerra é coisa de mulher. elas dizem: isso não é prazeroso? elas dizem que cuspiram nos calcanhares dos homens, que cortaram os canos das botas deles. além disso, dizem que, embora o riso seja uma prerrogativa masculina, elas querem aprender a rir. elas dizem que, sim, de agora em diante estão prontas. elas dizem que os seios os cílios curvados os quadros planos ou arredondados, elas dizem que as barrigas salientes ou côncavas, elas dizem que as vulvas, que tudo isso está em movimento a partir de agora. elas dizem que estão inventando uma nova dinâmica. elas dizem que estão se livrando dos lençóis. elas dizem que estão se levantando da cama. elas dizem que estão deixando os museus as vitrines os pedestais onde foram afixadas. elas dizem que estão maravilhadas por poder se mover.”
  • “elas dizem: aonde levar o fogo, qual terra incendiar, qual assassinato perpetrar? elas dizem: não, não vou me deitar, não vou descansar o corpo cansado até que esta terra à qual fui tantas vezes comparada, virada de cabeça para baixo, seja para sempre incapaz de dar frutos.”
  • “elas dizem: inferno, que a terra seja como um vasto inferno. então elas falam chorando e gritando. elas dizem: que minhas palavras sejam como a tempestade o trovão o relâmpago que os poderosos deixam cair das alturas. elas dizem: deixem-me ser vista armada em todos os lugares. elas dizem: raiva ódio revolta. elas dizem: inferno, que a terra seja como um vasto inferno, destruindo matando e incendiando os edifícios dos homens os teatros as assembleias nacionais os museus as bibliotecas as prisões os hospitais psiquiátricos as fábricas antigas e novas dos quais elas libertam os escravos. elas dizem: que a memória de Átila e suas hordas guerreiras pereça da história por sua desproporcional docilidade. elas dizem que são as mais bárbaras entre as bárbaras.”
  • “elas citam os longos versos: somos de fato a escória deste mundo. o trigo, o milho, a espelta e todos os cereais / é para os outros que os semeamos, quanto a nós, miseráveis fazemos pão com um pouco de sorgo. os galos galinhas gansos frangos são os outros que os comem, quanto a nós, algumas nozes comemos raízes como os porcos. somos miseráveis e miseráveis seremos. somos de fato a escória deste mundo. elas tomam como síntese dessa citação a frase de Flora Tristán, as mulheres e o povo marcham de mãos dadas.”
  • “elas dizem que devemos abstrair todas as narrativas referentes àquelas que foram vendidas espancadas detidas seduzidas levadas violadas e trocadas como mercadoria vil e preciosa. elas dizem que é preciso abstrair o discurso que foram obrigadas a proferir contrariamente à sua opinião e em conformidade com os códigos e convenções das culturas que as domesticaram. elas dizem que todos os livros devem ser queimados, à exceção dos trechos que possam lhes trazer vantagens em uma era futura. elas dizem que a realidade só existe depois de ser moldada por palavras regras regulamentos. elas dizem que, no que lhes diz respeito, tudo deve ser refeito a partir de elementos embrionários. elas dizem que, em primeiro lugar, o vocabulário de toda língua deve ser analisado, modificado, revirado, que toda palavra deve ser meticulosamente examinada.”
  • “elas dizem: não há espetáculo mais angustiante do que o das escravas que se comprazem com seu estado servil. elas dizem: você está muito longe de ter o orgulho das aves selvagens que se recusam a chocar os ovos quando estão enjauladas. elas dizem: siga o exemplo das aves selvagens que, mesmo acasalando com os machos para aliviar o tédio, se recusam a se reproduzir se não estão em liberdade.”
  • “elas os levam para as colinas. sobem com eles até os terrenos elevados. elas os fazem sentar ao lado delas nos aterros. eles aprendem seus cantos durante as tardes quentes. elas provam os frutos que aprendem a cultivar. eles tentam reconhecer as flores que elas lhes apontam nos canteiros nos arbustos nos prados nos campos. elas escolhem com eles nomes para as coisas ao redor. elas os fazem olhar para o espaço que em toda parte se estende a seus pés. é uma pradaria sem fim coberta de flores, bem-me-queres na primavera, margaridas no verão, no outono açafrão branco e azul. é um oceano azul-esverdeado da cor do leite, com navios passando ou apenas vazio. são campos despojados de construções, nos quais, até onde os olhos podem ver, crescem o milho o centeio ou a cevada verde, o arroz cor de laranja. elas os fazem saborear a suavidade do clima, idêntica ao longo das estações, inalterada pelo dia e pela noite.”
  • “uma das mais resistentes entoa um canto para retomar a coragem. ela diz: não abaixe a cabeça como quem foi vencida. ela diz: desperte tenha coragem a luta é longa a luta é árdua / mas o poder está na ponta de um fuzil.”
  • “eles, então, entoam o canto dos assaltantes: os rebeldes de cabelos compridos estão unidos na vida e na morte / não atacam viajantes solitários não atacam os desarmados mas se um funcionário ou um oficial público se aproximar seja ele justo ou corrupto eles lhe deixarão apenas a pele sobre os olhos. elas, aproximando-se dos rapazes de cabelos compridos, abraçam-nos com força.”
  • “movidas por um impulso comum, estávamos todas em pé procurando tatear o fluxo uniforme, a unidade exultante da Internacional. uma soldada idosa e grisalha soluçava como uma criança. Alexandra Ollontaï mal consegue conter as lágrimas. o grandioso canto invadiu o salão, atravessou portas e janelas, alcançou a calmaria do céu. a guerra acabou, a guerra acabou, disse uma jovem operária ao meu lado. o rosto dela brilhava. e, quando tudo terminou e ficamos ali em uma espécie de silêncio constrangedor, uma mulher exclamou do fundo do salão: camaradas, lembremo-nos das mulheres que morreram pela liberdade. e entoamos a Marcha Fúnebre, uma melodia lenta, melancólica e ainda assim triunfante.”
nov 24 2021 ∞
jun 15 2022 +