dom casmurro, machado de assis

  • se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.
  • o interno não aguenta tinta.
  • este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. não se ouve? também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...
  • que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça não as rege por meio de ideias.
  • conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres.
  • talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído.
  • quantos minutos gastamos naquele jogo? só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.
  • a verdade é que minha mãe era cândida como a primeira aurora, anterior ao primeiro pecado;
  • e quem sabe se os vagalumes, luzindo cá embaixo, não seria para mim como rimas das estrelas, e esta viva metáfora não me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e sentidos próprios?
  • [...] fui à janela indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais.
  • a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora objeto de ambição e da rivalidade da europa e dos estados unidos.
  • [...] a vaidade é um princípio da corrupção.
  • os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de deus, e o relógio foi assim marchando alternativamente a minha perdição e a minha salvação.

ㅤ — o colecionador de sombras, joão batista de melo

  • prendo-me em casulos, dou as mãos para sempre em brinquedos de roda, hesito em quebrar os ovos. eu não romperia a casca para encontrar a vida. eu me grudaria no óleo espumoso da clara, indiferente aos pios que me chamassem pra fora.

como o soldado conserta o gramofone, saša stanišíć

  • quanto mais lágrimas cobriam suas faces, sua boca, seus lamentos e seu queixo assim como o óleo cobre o fundo de uma frigideira [...]
  • quando há histórias em algum lugar, estou em algum lugar imediatamente.
  • um trabalho, eu exclamei certa vez, não precisa comer, e minha mãe respondeu: como não, a mim ele devora todos os dias.
  • ironia é uma questão diante da qual não se tem resposta, mas sim raiva.
  • as pessoas mais solitárias amam apenas a si mesmas.
  • dentro do gramofone, ouve-se um estalo. deve ser esse o som fino que se ouve quando um falcão beija um pardal com cuidado, a fim de não machucá-lo.
  • que tempo é esse que chegou, em que se é obrigado a sentir medo de uma ciranda e fechar os ouvidos para cantos e cantorias?
  • eu fui à mesquita. eu sei como se faz: ficar de joelhos e pensar em alguma coisa bonita que ainda não se tornou verdadeira.
  • acho que é mais ou menos assim quando se vive e então, de uma hora para outra, não vive mais. a gente se assusta um pouco e alguém acende uma vela.
  • tentei explicar a francesco que italianos e iugoslavos eram muito mais do que simplesmente vizinhos, pois quem divide algo tão belo quanto um mar e algo tão horrível quanto uma segunda guerra mundial, tinha de, por exemplo, cantar junto muito mais.
  • qual será a música que um prédio toca durante a guerra?
  • eu quero ter orgulho de alguma coisa na qual ninguém acredita uma vez na vida

o velho que acordou menino, rubem alves

  • a saudade é uma coisa que fica andando pelo tempo passado à procura dos pedaços de nós mesmos que se perderam.
  • morreu de um jeito que eu gostaria de morrer. estava tomando sopa com as duas filhas, falou uma coisa engraçada como era seu costume, deu uma gargalhada e seu rosto mergulhou no prato. morreu em meio a uma risada, tomando sopa...
  • pois não será isto mesmo? que deus é uma criança que quer dar uma grande festa?
  • já sugeri, inclusive, uma alteração na liturgia do casamento: no lugar onde se diz "até que a morte os separe" que se diga "até que a casa os separe".
  • o fogão de lenha aceso era de altar. a gente adorava, sem saber. o fogo. era em torno do fogo que o lar acontecia.
  • a conversa era só uma desculpa para estar juntos. a conversa era uma continuação das mãos. as palavras tinham carne.

ㅤ — retornar com os pássaros, pedro maciel

  • o sonho é sempre uma sombra da memória
  • o meu avô sempre dizia que o big bang é o tempo em si mesmo
  • há muitos outros que não se olham no espelho, exceto quando olham meio de lado, como se fosse um outro alguém
  • eu sou um desalmado. passo horas e horas olhando o sol entardecer os figos ainda verdes. agora chove. chove. que eu fiz da vida? fiz o que ela fez de mim... perdi a memória recente mas encontrei o meu tempo. só lembro de ontem com certa antecedência
  • às vezes me sinto dentro do tempo e por fora do mundo
  • admiro meus antepassados e esses povos de astrônomos: caldeus, assírios, pré-colombianos, que, por causa de seu gosto pelo céu, fracassaram na história.
  • nunca escrevi uma única linha na minha temperatura normal
  • mas quem fala não é quem escreve e quem escreve não é quem é
  • o amor acontece quando acariciamos a textura de uma superfície, quando algo é dito com as mãos ou com a boca. a boca usa histórias para acariciar, faz surgir texturas dispersas, texturas que podem ser lidas em voz alta. mas quase ninguém é capaz de ler.

pequena coreografia do adeus, aline bei

  • no fundo, toda gente só queria mesmo era suspender o tempo, e por que não? voar um pouco, esse poder de gelo e asa que arte sempre tem.

ㅤ — o pintassilgo, donna tartt

  • costumava ser um dia perfeitamente comum, mas agora salta no calendário como um prego enferrujado
  • houve noites no deserto em que eu me senti tão enjoado de tanto rir, convulsionado e curvado de dor no estômago por horas a fio, que teria me jogado alegremente na frente de um carro para fazer aquilo parar

ㅤ — perto do coração selvagem, clarice lispector

  • sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo
  • — o que é que se consegue quando se fica feliz? sua voz era uma seta clara e fina
  • o pai morrera como não se vê o fundo do mar, sentiu
  • por que surgem em mim essas sedes estranhas? a chuva e as estrelas, essa mistura fria e densa me acordou, abriu as portas do meu bosque verde e sombrio, desse bosque com cheiro de abismo onde corre água
  • mas o sonho é mais completo que a realidade, esta me afoga na inconsciência. o que importa afinal: viver ou saber que se está vivendo?ㅤ

crying in h mart, michelle zauner

  • [...] she always told me she’d like to return as a tree. it was a strange and comforting answer, that rather than something grand and heroic, my mother preferred to return to life as something humble and still.
  • her art was the love that beat on in her loved ones, a contribution to the world that could be just as monumental as a song or a book. there could not be one without the other. maybe i was just terrified that i might be the closest thing she had to leaving a piece of herself behind.
  • when it was over i collected all the bouquets, not wanting to leave a single flower behind. i had a selfish, desperate desire for her gravesite to be so packed with blossoms and bulbs that you could see them from the road. i wanted to advertise how deeply loved my mother had been. i wanted every passerby to question if they had a love like that.
  • how cyclical and bittersweet for a child to retrace the image of their mother. for a subject to turn back to document their archivist.

a hora da estrela, clarice lispector

  • eu medito sem palavras e sobre o nada. o que me atrapalha a vida é escrever.
  • eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. e o que escrevo é uma névoa úmida.
  • escrevo por ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dia.
  • também porque — e vou dizer agora uma coisa difícil que só eu entendo — porque essa bebida que tem coca é hoje. ela é um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente.
  • para que tanto deus. por que não um pouco para os homens.
  • ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente.
  • não se conta tudo porque o tudo é um oco nada.
jan 31 2022 ∞
jan 2 2023 +