- e ela está de novo ali, na superfície, respirando em espasmos no mais completo silêncio porque as palavras foram sempre tão deficientes para a sua dor que nem sequer se dá ao trabalho de buscá-las
- finalmente o grito preso ali se solta. e ela sente que nunca mais o grito cessará, que aquele grito é para sempre, é um grito para toda a vida e para além da vida. porque agora ela alcança a inteireza do horror. e gritos são coisas que não viram palavras, palavras que não podem ser ditas. não há como escapar da carne da mãe. o útero é para sempre
- para mim nunca houve um cordão umbilical que pudesse ser cortado. só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser carne da mãe. este ritual que agora pinga de mim como um fracasso. mais um. eu corto corto corto e ainda não sei que existo. continuo sem corpo. e ela lá fora, com medo que eu vá embora, fingindo desconhecer que não posso partir. nunca pude. porque arrasto comigo o corpo dela, que me engolfa e engole
- ainda que eu sangre com sangue, este ritual eu conheço. ele faz de mim o pouco que tenho de mim. é uma constituição. me constituo eu pelos cortes em mim. as palavras, não. o que elas farão de mim?
- mas e se não existir eu além dessa mistura de carnes de mãe e de filha?
- tão triste. de repente, nada faz sentido. mas não do jeito de sempre. por um momento, não reconheço as coisas ao meu redor. é tudo estranho, como se eu nunca tivesse visto os objetos que me cercam e não soubesse o que eram. não há significado algum no que vejo. me sinto descolada de mim
- para falar eu teria de amar melhor. e eu não sou muito boa em amar
- eu fiz o que pude, afinal. como todo mundo. não acho que tenha sido mais anormal do que qualquer um. apenas que nunca fui tão boa em disfarçar o mau cheiro. nesse quesito, sou uma nulidade
- não há nenhuma hora de verdade porque não há verdade que não possa ser cortada em pedacinhos bem pequenos de mentira
- acho que não tenho alma alguma. se tenho, a carne está colada nela e não vai deixa-la ir sem antes arrancar um pedaço
- o que eu quero dizer é que não é porque a gente não saiba como fazer as coisas do jeito certo que a gente não ame
- eu não sabia que gostava tanto de viver, mas eu gosto. agora que vou morrer eu gosto
- laura laura laura, se eu não puder olhar para você como vou saber que existo? foi isso que aconteceu ali, na privada, quando você olhou para mim. ninguém tinha olhado pra mim antes. não como você, laura. e todos esses anos que atormentei você e fiz quase tudo errado, o que eu queria era que você continuasse me olhando para que eu pudesse saber que existia, que tinha um corpo e que podia viver
- você nasceu quando olhou para mim, e eu me vi no seu olhar. e desejei que você vivesse. você é tudo o que sinto de vivo em mim agora que morro
- eu posso sentir o que ela sente. e neste momento quero morrer com minha mãe. porque os dias sem ela que virão não fazem sentido para mim. eu não serei capaz de enxergá-los sem ela. e mesmo agora, que a amparo, que quase a carrego, sei que é ela quem me ampara e me carrega. que só sabemos andar juntas. e que, sem ela, me faltarão pernas
jun 10 2021 ∞
jun 27 2021 +