• quando eu era criança, li em algum lugar uma história sobre dois homens que foram conhecer o monte fuji. o mais inteligente observou a elevação do sopé de alguns ângulos e ficou satisfeito: “então esse é o monte fuji. ele é maravilhoso por causa disso e disso”. assim pensando, foi embora. foi bastante eficiente. e rápido. mas o menos inteligente não conseguiu compreender o monte fuji tão facilmente assim, não quis ir embora e subiu ao seu cume. levou tempo e foi penoso. gastou energia e ficou exausto. e finalmente pensou: “então esse é o monte fuji”. ele compreendeu, ou seja, até certo ponto, ficou satisfeito.
  • os romancistas (ou a maioria deles) têm mais a ver com o segundo homem, que, fico constrangido em dizer, não é muito inteligente. é do tipo que só consegue compreender o monte fuji depois de subir ao seu cume. ou, melhor dizendo, não compreende mesmo depois de subir várias vezes, ou, quanto mais sobe, compreende menos ainda.
  • desde o começo eu possuía uma ideia consideravelmente clara do tipo de romance que queria escrever. tinha em mente a imagem do romance ideal: “ainda não consigo escrever bem, mas o que eu quero mesmo escrever, no futuro, quando tiver maior habilidade, é esse tipo de romance”. essa imagem sempre pairava no céu, bem em cima da minha cabeça, e brilhava como a estrela polar. para visualizá-la, bastava olhar para cima. assim, eu conseguia descobrir onde me encontrava e para onde deveria seguir. sem esse ponto fixo, eu provavelmente teria ficado confuso e perdido muitas vezes.
  • é apenas opinião minha, mas, para um determinado artista ser considerado original, ele precisa preencher os seguintes requisitos básicos:
    • 1. possuir um estilo próprio que seja visivelmente diferente do de outros criadores (pode ser som, estilo de escrever, forma ou cor). só de vê-lo (ouvi-lo) um pouco, deve se reconhecer (quase que) instantaneamente que se trata de uma expressão sua.
    • 2. conseguir renovar o seu estilo por conta própria. o estilo precisa se desenvolver com o tempo. não pode se manter no mesmo lugar para sempre. e deve possuir uma força de reinvenção espontânea.
    • 3. com o tempo esse estilo próprio precisa se tornar um padrão a ser absorvido pela mente das pessoas e deve ser incorporado como parte do critério de avaliação de valores. ou precisa se tornar uma rica fonte de citação para os futuros artistas.
  • [...] acredito que não seja necessário acrescentar algo próprio para encontrar um estilo ou um discurso pessoal e original; o necessário de fato é subtrair algo. parece que viemos acumulando muita coisa ao longo da vida. estamos sobrecarregados de informações, de bagagem [...] quando tentamos nos expressar, todo esse peso acaba sobrecarregando o motor [...] então, como separar o que é indispensável do que não é muito necessário e do que é completamente inútil? [...] acho que um critério bem simples é perguntar a si mesmo: “eu me sinto feliz fazendo isso?”. se você está realizando uma atividade que considera importante para si mesmo, mas não consegue sentir prazer nem alegria com isso, não consegue sentir empolgação, provavelmente há algo errado, algo em desarmonia. nesse caso, é preciso voltar à estaca zero e eliminar um por um os elementos desnecessários e artificiais que estiverem impedindo sua alegria.
  • se existe algo de original nos romances que escrevo, acredito que seja o fato de eu ser livre.
  • penso que na base dos romances que escrevo existe essa sensação de liberdade e espontaneidade (ou melhor, desejo que essas sensações existam). isso é a minha força motriz. na raiz de todo e qualquer ato de expressão deve haver sempre uma alegria rica e espontânea. originalidade, em outras palavras, nada mais é do que a forma resultante do impulso de querer transmitir ao maior número de pessoas essa alegria sem restrições, essa sensação de liberdade, da forma mais natural possível.
  • se você deseja expressar algo livremente, talvez seja melhor mentalizar “como será o eu que não busca nada?” em vez de pensar “o que eu busco?”. tentar encontrar a resposta para a questão “o que eu busco?” será sempre uma tarefa árdua. e, quanto mais pesado for o assunto, menos liberdade e menos agilidade haverá. e, sem agilidade, o texto perderá o vigor. um texto sem vigor não atrai as pessoas — nem o próprio autor. em contrapartida, o “eu que não busca nada” é livre, ágil e leve como uma borboleta. basta abrirmos as mãos e deixarmos que ela voe.
  • quando a gente parte do princípio de que não tem nada para escrever, o motor do veículo leva um tempo para ligar, mas depois que ele adquire força motriz e começa a avançar o resto fica mais fácil. isso porque não ter assunto sobre o qual escrever significa conseguir escrever qualquer coisa, de forma livre. mesmo que você só tenha materiais leves em quantidade limitada, se aprender a mágica das combinações, conseguirá criar quantas narrativas desejar, de forma ilimitada. e conseguirá construir coisas surpreendentemente pesadas e profundas — isso se, claro, você se tornar um expert nesse trabalho e mantiver um nível saudável de ambição. em comparação, os escritores (claro que nem todos) que começam com um material pesado tendem a ser derrotados por seu peso.
  • assim, mesmo que você pense: não possuo os materiais necessários para escrever romances, não precisa desistir. se mudar um pouco a perspectiva, o modo de ver as coisas, perceberá que muitos materiais estão espalhados à sua volta. eles só estão esperando que você os perceba, recolha e utilize. através da ação humana, mesmo os materiais que parecem mais insignificantes podem servir como fonte infinita de criação. o mais importante, vou repetir, é não perder o nível saudável de ambição.
  • a originalidade do romance é alcançada na correlação entre o material e o veículo. para concluir: se você deseja escrever um romance, observe atentamente seu entorno. o mundo pode parecer monótono, mas está cheio de diamantes brutos, atraentes e misteriosos. romancistas são aqueles que conseguem identificá-los. e, ainda melhor, eles são oferecidos quase gratuitamente. se você tiver um bom par de olhos, conseguirá escolher e coletar livremente essas pedras preciosas brutas.
  • quando escrevo um romance, imponho uma regra a mim mesmo: produzir cerca de dez páginas de 400 caracteres de manuscrito japonês por dia. não escrevo mais do que isso nem quando estou inspirado, e me esforço para escrever esse tanto mesmo quando estou sem inspiração. pois, para um trabalho de longo prazo, a regularidade é muito importante. não conseguirei alcançar isso se escrever um grande volume de forma impulsiva quando estiver inspirado e descansar quando não me sentir inspirado. então escrevo cerca de dez páginas manuscritas por dia, como se eu tivesse que bater o cartão de ponto.
  • o romance é uma história longa e, se a amarra ficar apertada do começo ao fim, os leitores vão se sentir sufocados. por isso é importante afrouxar o texto aqui e ali. é preciso considerar uma margem para respiração. melhorar o equilíbrio entre os detalhes e o todo. eu dou uma pequena ajustada no texto com base nessa perspectiva [...] romances necessitam de partes desleixadas e frouxas. graças a elas, as partes condensadas conseguem obter o efeito esperado.
  • concordo com as críticas da minha esposa em alguns pontos e penso: ela tem razão, talvez ela esteja certa [...] mas em outras discordo. por isso estipulei uma regra pessoal para o processo de introduzir outra opinião: sempre reescrever a parte em que foi apontado algum defeito, seja ele qual for. mesmo que eu não concorde com as críticas, reescrevo todas as partes em que foi apontado algum defeito. se não concordo com alguma sugestão, reescrevo mesmo assim, mas de forma completamente diferente da sugerida. independentemente do que reescrevo, quando refaço um trecho com cuidado e o leio depois, costumo concluir que ficou melhor. na maioria das vezes em que apontam algum defeito em meu livro, destacam algum tipo de problema daquele trecho. ou seja, o fluxo do romance está de alguma forma obstruído, em maior ou menor grau. o meu trabalho é eliminar essa obstrução. é o escritor quem decide como eliminá-la. mesmo que eu pense: esse trecho está perfeito. não há necessidade de reescrevê-lo. eu me sento à mesa, em silêncio, e o reescrevo.
  • é claro que não podemos acatar cegamente todas as opiniões alheias. algumas podem ser insensatas e injustas. mas, se a opinião vier de alguém em sã consciência, nela deve estar contido algum significado. ela irá esfriar sua cabeça aos poucos até que atinja a temperatura adequada. a opinião das pessoas representa a sociedade, e quem vai ler o seu livro, no final das contas, é a sociedade. se você tentar ignorá-la, provavelmente ela também irá ignorá-lo.
  • eu mesmo não estou completamente satisfeito com as minhas obras do passado. algumas vezes sinto que hoje poderia escrever melhor. se releio, encontro defeitos aqui e ali, então não costumo ler os meus livros, a não ser que tenha algum motivo especial. mas procuro pensar que, na época em que escrevi a obra, certamente não teria conseguido fazer melhor, pois sei que dei o máximo de mim naquele momento. gastei o tempo que queria, investi toda a energia que possuía e, assim, concluí a obra. ou seja, lutei numa guerra mobilizando todas as minhas forças. até hoje tenho a sensação de que dei tudo de mim.
  • acredito que, para que o tempo seja nosso aliado, precisamos controlá-lo um pouco. não podemos ser sempre controlados por ele. caso contrário, acabamos em uma posição de passividade [...] se o tempo não nos espera, precisamos levar isso em conta e estabelecer o nosso cronograma de forma consciente. ou seja, em vez de esperarmos, devemos tomar a iniciativa de forma agressiva.
  • [...] o que posso dizer é que passei muito tempo escrevendo romances e, usando as palavras de carver, me esforcei para escrever “da melhor maneira dando o máximo de mim”. não penso que teria feito melhor se tivesse mais tempo. se não consegui escrever bem, significa que ainda me faltava habilidade como escritor no momento em que a escrevi, só isso. é uma pena, mas não é motivo para que eu me envergonhe. a falta de habilidade pode ser compensada mais tarde, com esforço.
  • se meus leitores sentirem na pele, por pouco que seja, uma espécie de calor profundo como o proporcionado pelas águas termais, para mim já é motivo de grande alegria. eu mesmo li muitos livros e ouvi muitas músicas buscando esse tipo de sensação. acredite na sua sensação mais do que em qualquer outra coisa. [...] tanto para o escritor como para o leitor, a sensação é o melhor critério.
  • [...] escrever é um trabalho solitário, principalmente no caso de romances longos. às vezes me sinto como se estivesse sentado sozinho no fundo de um longo poço. ninguém me ajuda, ninguém dá tapinhas nas minhas costas [...] enquanto escrevo, ninguém reconhece o que faço. é um peso que o escritor precisa carregar sozinho, em silêncio. eu me considero bastante paciente para esse tipo de ofício, mas às vezes fico exausto. entretanto, ao produzir dia após dia, com cuidado e paciência, como um pedreiro que empilha tijolos um por um, chega um momento em que penso “sim, sou mesmo um escritor!”. e consigo aceitar essa sensação como uma coisa boa, um motivo para comemorar [...] preciso receber os dias que chegam, um de cada vez, de forma constante, e deixá-los ir embora, sem quebrar o ritmo.
  • ao escrever com persistência e de forma contínua, acontece algo dentro de mim. mas isso leva certo tempo. você precisa aguardar com paciência. o que é necessário para realizar esse trabalho com paciência e de forma incansável? nem preciso dizer que é necessário ter força para persistir.
  • o romancista narra uma história. e narrar uma história é, em outras palavras, tomar a iniciativa de adentrar no inconsciente. é descer para as trevas do interior da mente. quanto maior for a história que o escritor quiser contar, mais fundo ele precisará descer. da mesma forma que, quanto mais alto for o prédio a ser construído, maior terá que ser a sua fundação subterrânea. quanto mais densa for a narrativa, mais pesada e mais espessa serão as trevas subterrâneas.
  • no meio dessas trevas o escritor encontra as coisas de que precisa, os nutrientes necessários para o seu romance, e com esse material em mãos retorna à consciência e o converte em texto com forma e significado. as trevas muitas vezes estão cheias de coisas perigosas. os seres que aí vivem tentam iludir as pessoas assumindo diversas formas. nesse lugar não há sinalização nem mapas. alguns trechos parecem um labirinto, são como grutas subterrâneas. se o escritor se descuidar, acabará se perdendo e talvez não consiga mais voltar à superfície.
  • no meio dessas trevas, os inconscientes coletivo e individual estão misturados, assim como o passado e o presente. nós fazemos uma mistura indistinguível de todas essas coisas, e às vezes ela pode acarretar resultados perigosos. para confrontar essa força das trevas e para enfrentar os perigos no dia a dia, precisamos de um bom condicionamento físico. [...] e isso não significa ser forte em relação a outras pessoas; é na medida necessária para si mesmo.
  • quanto mais resistente for a mente, melhor, e, para manter essa resistência por muito tempo, é imprescindível fortalecer e manter a força do corpo, que é o seu recipiente. [...] quando preciso escrever romances, consigo manter a mente firme por cerca de cinco horas por dia, sentado à mesa. e essa força — pelo menos a maior parte dela — não é algo inerente a mim; ela foi adquirida através de treinamento. eu até diria que, com esforço, qualquer pessoa conseguiria tal resistência; basta querer — embora não seja algo fácil.
  • a meu ver, é praticamente impossível, na prática, manter-se somente com determinação ou uma alma firme e positiva, deixando de lado o avanço do corpo carnal [...] se as coisas penderem para um dos lados, cedo ou tarde haverá uma reação contrária, e as pessoas sofrerão as consequências. a balança que pende para um dos lados sempre tende a voltar ao equilíbrio. por mais que você tenha uma ideia maravilhosa, uma firme determinação e o dom de criar uma narrativa rica e bela, será impossível se concentrar se o seu corpo estiver sendo assolado por dores físicas intensas e ininterruptas.
  • as forças física e espiritual precisam estar equilibradas. precisamos criar uma estrutura para que elas se balanceiem de forma eficiente.
  • quando o escritor cria uma obra, em certo sentido, uma parte dele também está sendo simultaneamente criada.
  • [...] o ato de escrever romances representou para mim uma espécie de autocura. afinal, todo e qualquer ato criativo visa, em maior ou menor grau, a uma autocorreção. em outras palavras, através dele fazemos uma relativização de nós mesmos, inserindo a nossa alma em um recipiente de formato diferente do atual e, assim, procuramos eliminar (ou sublimar) a contradição, a distorção e a deformação que inevitavelmente surgem ao longo da vida. se der certo, podemos compartilhar esse efeito com os leitores. eu não tinha consciência na época, mas acho que, quando escrevia, a minha mente buscava instintivamente esse tipo de autopurificação.

quanto a criação de personagens

    • os romancistas têm que criar personagens verossímeis, que despertem a curiosidade e que sejam imprevisíveis na trama central da obra. romances nos quais personagens previsíveis falam e fazem coisas previsíveis não despertam o interesse dos leitores [...] para mim, a capacidade dos personagens de fazer a narrativa avançar é mais importante do que o fato de eles serem verossímeis, despertarem a curiosidade e serem imprevisíveis.
    • [...] personagens com vida, no sentido literal da palavra, são aqueles que agem de forma autônoma a partir de determinado momento, tornando-se independentes do seu criador [...] quando o romance começa a deslanchar, os personagens começam a se mover por conta própria, o enredo se desenvolve sozinho e, como resultado, tem início uma situação bastante feliz em que o autor simplesmente escreve o que está se passando na sua frente, diante dos seus olhos. e, em alguns casos, os personagens pegam na mão do autor e o guiam para um lugar completamente inesperado, nunca imaginado antes.
mar 29 2023 ∞
apr 5 2023 +