• "o medo. medo não medo não medo não, resistiu. pois se sentisse medo, pensou vagamente, não poderia contar sequer consigo próprio. e eu só tenho a mim, eu só tenho a mim, repetiu, voltando a cair sobre a cama. não posso sentir medo, não devo sentir medo, não quero sentir medo."
  • "um dia tu vais compreender que não existe nenhuma pessoa completamente má, nenhuma pessoa completamente boa. tu vais ver que todos nós somos apenas humanos. e sofrerás muito quando resolveres dizer só aquilo que pensas e fazer só aquilo que gostas. aí, sim, todos virarão as costas e te acharão mau por não quereres entrar na ciranda deles, compreendes?"
  • "e eu não gosto de mim. ou gosto? não sei. talvez pareça não gostar justamente porque gosto muito, então exijo demais de meu corpo, e as coisas erradas que ele faz - são tantas! - me fazem detestá-lo. a gente sempre exige mais das pessoas e das coisas que quer bem, as que queremos mal ou simplesmente não queremos nos são indiferentes."
  • "ah, como eu queria ser eu mesmo, por um dia, uma hora que fosse. mas como é difícil, meu deus, como é difícil."
  • "ontem, caminhando pela beira do rio, eu pensei que, se desse dois passos e um impulso no corpo, em breve tudo estaria terminado. olhei para a rua também, e aqueles automóveis que passavam zunindo ofereciam uma morte fácil e rápida. aqui no meu quarto também existem coisas que podem matar - a lâmina no aparelho de barbear, a própria janela de que gosto tanto. no quarto de meus pais há o revolver na gaveta, o vidro de comprimidos para dormir. na cozinha, gás. no banheiro, aqueles vidros escuros de veneno. é fácil morrer. a toda hora, em todos os lugares, a morte está se oferecendo. mais difícil é continuar vivendo. eu continuo. não sei se gosto, mas tenho uma curiosidade imensa pelo que vai me acontecer, pelas pessoas que vou conhecer, por tudo que vou dizer e fazer e ainda não sei o que será. ontem, foi com dificuldade que consegui sair de perto do rio. hoje parece impossível que eu tenha pensado naquilo."
  • "mamãe há pouco bateu na porta, depois abriu e perguntou se eu estava bem. achei engraçado. 'eu nunca estou bem', tive vontade de responder. ou então: 'o que é estar bem?' preferi dizer que sim: 'sim, mamãe, estou bem.' ela se foi."
  • "deus. eu acho que o problema maior em relação a deus não é crer ou descrer - é sentir ou não sentir. não há uma crença sem o sentimento profundo, enraizado, de que ele existe e está em nós. ou se há, é uma crença completamente falsa, como quase todas que conheço. e eu não sei se creio ou não porque ainda não senti."
  • "acho que o fato de ser só é inevitável, independente de fatos externos. há pessoas que nascem para serem sós a vida inteira. eu, por exemplo. acho que mesmo que um dia case e tenha uns dez filhos (coisa que não me atrai nem um pouco, diga-se de passagem), ou mesmo que consiga encontrar a amizade que sonho - e de cuja existência a cada dia mais e mais duvido -, acho que mesmo que aconteçam essas coisas, continuarei só. claro que há a minha própria companhia, este diário, os livros que leio, as drogas que escrevo de vez em quando - mas tudo como que circunscrito a um córculo completamente fechado. frequentemente me assusto, pensando que a vida vai acabar sem que eu encontre um grande amor ou uma grande amizade, ou mesmo uma grande vocação que justifique esse isolamento. mas nada posso fazer, essas coisas acontecem sem que a gente as procure. o melhor a fazer é deixar 'lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar', como disse o poeta. e mesmo assim, talvez eu continue a fazer as refeições sozinho durante toda a vida."
  • "queria e quero - ainda. voar junto com alguém, não sozinho. mas todos me parecem tão fracos, tão assustados e incapazes de ir muito longe. talvez eu me engane, e minhas asas sejam bem mais frágeis que meu ímpeto. mas se forem como imagino, talvez esteja fadado à solidão."
  • "não precisar de ninguém... e há pouco me queixava de solidão. eu não me entendo mesmo."
  • "vou até a minha praça, na beira do rio. ver o pôr do sol e, por um segundo, sentir uma alegria enorme. depois, uma espécie de medo sem perguntas e a tristeza crescendo, fazendo nascer a vontade de morrer. ou de viver ainda mais, com muito mais intensidade."
  • "não sei como me defender dessa ternura que cresce escondido e, de repente, salta para fora de mim, querendo atingir todo mundo. tão inesperada quanto a vontade de ferir, e com o mesmo ímpeto, a mesma densidade. mas é mais frustrante. sempre encontro a quem magoar com uma palavra ou um gesto. mas nunca alguém que eu possa acariciar os cabelos, apertar a mão ou deitar a cabeça no ombro. sempre o mesmo círculo vicioso: da solidão nasce a ternura, da ternura frustrada, a agressão, e da agressividade torna a surgir a solidão. todos os dias o ciclo se repete, às vezes com mais rapidez, outra mais lentamente. e eu me pergunto se viver não será essa espécie de ciranda de sentimentos que se sucedem e se sucedem e deixam sempre sede no fim."
  • "hoje não me sinto menos só, apenas menos triste."
  • "gosto de tudo que ameaça morrer e de repente se levanta, mais vivo ainda, surpreendendo a todos."
  • "de repente senti vontade de fumar. já fumei durante algum tempo, depois deixei. o que eu mais gostava não era do cigarro, mas do gesto. eu me sentia mais seguro, mais adulto, quando fumava. não sei bem por que deixei. agora o que me falta é novamente o gesto. um gesto qualquer para encher este momento. um gesto ou uma palavra. posso cantar, mas não vai adiantar nada. a voz é minha e me irrita, as palavras são de canções que já conheço, e me aborrecem. e gesto - só o de abrir um livro e ler, ou o de fechar este caderno. falta, falta alguma coisa que não sei o que é."
  • "tenho lido muito. quando leio certas coisas, me vem certo alento, nem chega a ser uma esperança, um sopro leve que logo se desfaz. penso: 'talvez eu pudesse... se outros puderam, afinal... talvez eu pudesse também...' por alguns segundos, quase tenho certeza de que eu poderia também criar outras vidas, inventar histórias, enredar-me em outros problemas além dos meus. é só um instante. para escrever, eu acho, é necessário um desligamento muito grande, um distanciamento enorme de si próprio e das coisas que rodeiam a gente. não consigo fazer isso. escrevo, às vezes, mas são coisas medíocres. uma casca de palavras ocas, coloridas, porque dentro não há absolutamente nada. afinal, se eu mesmo sou vazio, como poderia criar coisas cheias? criar. um dia, quem sabe, depois de muito amar e desamar, querer e não querer, depois de quedas e voltas, avanços e saltos, talvez depois disso tudo reste alguma coisa. e isso, essa sobra, talvez possa ser transformada em outra a que darei o nome de criação, quem sabe."
  • "mas não estava triste. era como se de repente tivesse percebido que vivia, e que aquilo nada mais era do que um capítulo, uma etapa."
  • "então, de repente, sem pretender, respirou fundo e pensou que era bom viver. mesmo que as partidas doessem, e que a cada dia fosse necessário adotar uma nova maneira de agir e de pensar, descobrindo-a inútil no dia seguinte - mesmo assim era bom viver. não era fácil, nem agradável. mas ainda assim era bom. tinha quase certeza."
  • "odeio pessoas ignorantes. me sinto mau por não conseguir gostar de todo mundo, mas é o que sinto. os ignorantes, os vaidosos, os usurários, os pedantes. detesto tudo que é afetado, detesto quem não se busca. quem se acostuma a viver, da mesma maneira como se acostuma a dormir ou comer."
  • "mas só poderei me aproximar dos outros depois que começar a desvendar a mim mesmo. antes de estender os braços, preciso saber o que há dentro desses braços, porque não quero dar somente o vazio. também não quero me buscar nos outros, me amoldar ao que eles pensam, e no fim não saber distinguir o pensar deles do meu."
  • "ah, se eu pudesse escrever com os olhos, com as mãos, com os cabelos - com todos esses arrepios estranhos que um entardecer de outono, como o de hoje, provoca na gente."
  • "um dia, poderei olhar-me nu em um espelho sem baixar os olhos."
feb 11 2018 ∞
feb 13 2018 +